Hoje é o "dia do índio"

"Essa reportagem foi escrita em dezembro de 2011, logo após o assassinato de uma liderança kaiowa no Mato Grosso do Sul. O corpo, 5 meses após o ataque, ainda não foi encontrado. Em 6 de abril de 2012, conforme carta abaixo, o antropólogo e líder kaiowa Tonico Benites foi ameaçado por pistoleiros armados, na frente de sua família"




Por Felipe Milanez
(de Dourados e Iguatemi, Mato Grosso do Sul)

A reunião está morna. Todos os líderes presentes sabem o que lhes esperam em casa. Terror, violência, ameaça. Sentem angústia. Sabem que podem ser mortos a qualquer momento, como foi Nísio Gomes, uma semana antes, o estopim para convocar a assembleia Aty Guasu dos povos kaiowa e guarani nhandeva no Mato Grosso do Sul, onde estou agora, sentado em um círculo na entrada de uma escola.

A Funai (Fundação Nacional do Índio) e o Cimi (Conselho Indigenista Missionário) mandaram representantes. A Força Nacional enviou uma viatura para garantir a segurança. Os líderes se apresentam, alguns jovens discorrem os pontos da pauta, mas é como se o verdadeiro motivo que os trouxesse ali ainda estivesse guardado, reprimido, e não fosse falado. Elpídio Pires, cacique, importante liderança guarani, decide então extrapolar a tensão. Mira nos olhos a representante da Funai no mesmo ambiente, como um enfrentamento. E sem firula, indignado, fala alto, gesticula e expressa o terrível sentimento pelo qual ele os indígenas estão passando: o constante medo de ser assassinado.
"Ninguém vai parar isso aqui. Para isso nos temos Funai”, diz, nervoso, colocando a culpa na agência do governo. “A experiência no Potrero…”, e em seguida passa a falar em fala em guarani. Potrero Guasu é a terra pela qual Pires está lutando, sua terra natal, o seu tekohá. Perseguido, ameaçado, chegou a ser preso em uma armação do prefeito local. E viu o sangue de outros guaranis misturar-se com a terra em ações de pistoleiros. Critica antropólogos: “A Funai vai pagar para antropólogos, e nunca vai sair a terra.”

Volta a falar na sua língua. Os outros se calam. Diante do silêncio dos brancos e da anuência explicita de todos os índios que compartilham seu temor, passa a fala em português.
“Não adianta colocar pessoa concursada, que não tem experiência da vivência nossa aqui. Pra o funcionário ficar, e o índio cair e morrer. Pra os brancos é lucro isso aí. Mas para nossa família não é assim. Por isso que de vez em quando eu estava desanimado. Porque eu sei o que está me esperando. Eu não tenho medo. Pode me matar, até a própria Funai. Foi isso o que aconteceu lá no Potrero Guasu. Eu vi meu parceiro sangrando pela terra dele, morrendo, caído. O assassino é fazendeiro. Para isso [prender] nós temos polícia. E se eu matar fazendeiro? Pra mim tem cadeia; para ele não tem. Isso ai que me doía muito. Eu pensei no meu filho. Isso eu trouxe hoje para falar para vocês. Que sintam isso comigo.”

Aplausos. Outros caciques e rezadores presentes se emocionam. Alguns choram. Pensam em seus filhos, pensam em outros parceiros, amigos, que também tiveram o sangue misturado na terra. Pensam em Nísio, morto dia 18, três semanas depois de ter conseguido entrar no seu tekohá, como os guarani chamam sua terra, sagrada.

No dia 18 de novembro e 2011, cedo pela manhã cerca de 40 pistoleiros em diversas caminhonetes invadiram o acampamento indígena Guaiviry, uma área de floresta no entorno de um pequeno rio, cercada de plantações de soja. Deram tiros no cacique, e também rezador (nanderu), Nísio Gomes. Acertaram tiros de chumbo e bala de borracha em diversas outras pessoas. Arrastaram o corpo pela pequena trilha até onde estavam as caminhonetes – uma delas tinha os pneus por cima do “shirú”, como os kaiowa chamam um pequeno altar de oferenda. Jogaram o corpo de Nisio da caçamba e, segundo relatos de outras pessoas da comunidade, que estavam assustados e em pânico, sequestraram uma menina com cerca de 5 anos e outros dois adolescentes jovens, em torno de 12 anos. Um paraguaio, reconhecido pelo sotaque com que fala guarani, teria dito: “não era para vocês terem matado ele”.

Encapuçados. Placas cobertas. Homens disfarçados, luvas. Armamento pesado – é díficil distinguir um revolver .38 de um .22, ou uma espingarda calibre .12 de uma escopeta mais potente. Como a “Ku Klux Kan” nos Estados Unidos, estavam ali para amedrontar, aterrorizar, matar, sem antes, xingar, menosprezar pessoas de outra etnia, de outra “cor” da pele, que falam outra língua e ocupam a mesma terra, mas por outras razões. Racismo. Terrorismo. Genocídio.

O assassinato ou, como a Policia Federal tem tratado a questão, “sequestro” e “desaparecimento” da liderança kaiowa serviu para, novamente, expor a brutalidade com que tem sido organizada a ocupação da terra no Mato Grosso do Sul. Grandes grupos econômicos produzindo riqueza em cana, soja e pasto, em terra tida como ancestral e sagrada para os povos indígenas, completamente excluídos dos benefícios que esse processo supostamente traria para a região.

De acordo com o Cimi, organização da Igreja Católica, forma mortos diretamente em conflito, nos últimos 10 anos, 23 índios guarani no Mato Grosso do Sul. Nos últimos oito anos, de 2003-2010 foram registrados 452 assassinatos no Brasil, dos quais 250 só no MS. Ou seja: 55% da violência contra os índios no país. A crueldade já chegou em órgãos internacionais, como a Organização dos Estados Americanos (OEA), e são denunciados em todo o mundo, como a atuação da organização britânica Survival International.

Demarcar o território guarani e kaiowa tem se mostrado um problema difícil de ser resolvido. Assim a questão tem sido tratada por sucessivos governos: “difícil”.
Em 2008, a Funai constituiu seis grupos de trabalho, coordenados cada um por um antropólogo. Rubem Almeida, antropólogo que trabalha há três décadas entre os guarani, foi designado, junto de outros 5 cientistas, para definir as áreas tradicionais. “Os resultados vão ser entregues, consolidados nos relatórios, até o final do ano”, diz Almeida. O estudo do tekohá Guaiviry, onde Nísio foi morto, está em fase final e sob a responsabilidade de Almeida. Como Nísio era o cacique do grupo, era também a principal fonte de informação de Almeida.

“O Nísio era o líder de roça, “jacareí”, diz Almeida. Eles se conheceram em 1976, Nísio, vivendo na reserva de Amambai, criada pelo antigo Serviço de Proteção ao Índio, vinha do Guaiviry. E nos anos 90 começou a tentar retomar a terra da qual havia sido expulso quando criança. Era casado com Odúlia Mendes, uma poderosa e respeitada ñandeci, rezadora.


“Os guarani tem a concepção de que são a primeira semente plantada na terra, criados por ñanderuvuçu, a entidade criadora, que criou a terra, e a primeira semente que planta é o homem”, explica o antropólogo. Isso explica, segundo a leitura científica, a profunda relação dos guaranis com o tekohá. “Assim como as plantas, com homem é a mesma coisa. A planta nasce em determinado lugar, é dali, como o guarani. Não tem a noção de propriedade da terra, é diferente, eles entendem que pertencem a uma determinada terra, e não que a terra pertence a eles. Essa visão filosófica define o entendimento deles no mundo.” Se a terra não é algo que pode ser individualizada, a terra é para todos. Inclusive para os brancos, a terra e tudo o que nela há, como bicho, mato, água. O pequeno rio que cruza o território do Guaviry, rio Verde, que desagua no Amambai, ficava a poucos passos da casa onde Nísio vivia. Tinha uma pequena queda d’água, cujo som chegava até o pátio da casa de Nísio.

Nísio quase não falava português, tinha dificuldade de dialogo com os brancos. “Mas falava muito bem guarani, era respeitado”, descreve Almeida. “Lembro do Nísio, nos últimos tempos, desde o final de 80, e sempre, a partir dele, a existência Guaiviry.

Quando se falava em Guaiviry, se pensa em Nisio”, recorda. “Guaivyry” quer dizer “o rio da Velha”. Contam os guaranis que ali teria morrido uma velha guarani. Ela estava tomando mate, quando foi lavar a cuia e caiu na água. Ao invés de esperar filho e filha que estavam na roça, foi buscar sozinha e morreu afogada. Nísio nasceu região. Por isso, era quem mais incentivava o retorno do grupo. “Em todos os casos de retomada tem algum representante que lidera. São os porta-vozes dos grupos domésticos, as famílias extensas, que são daquele lugar.

Sujeito calmo, suave. De fala baixa. Escutava mais do que falava, muitas vezes, era o ouvido e ombro amigo. “Se você visse o Nísio, não iria entender como é que alguém pode fazer o q fizeram. É muita covardia”, diz Almeida. “Extremamente brutal”.

As agressões e ameaças são constantes. Logo após o ataque a Nísio, uma comitiva da Presidência da República, junto da Força Nacional, foi abordada por um grupo de fazendeiros dispostos a intimidar as autoridades, às 16 horas e 15 minutos da tarde do domingo 27 de novembro de 2011, em um ponto a 2 quilômetros do acampamento tekohá Pyelito kue-Mbarakay, no município de Iguatemi. Esse grupo indígena havia sido violentamente atacado em agosto. A situação estava tensa e por isso a visita dos representantes do governo federal.

De acordo com relato das lideranças da Aty Guasu, assim ocorreu o confronto: “quando chegamos à encruzilhada da vicinal com a estrada asfaltada que liga Iguatemi a Tacuru, nos deparamos com as três caminhonetes. Os quatro ocupantes desses veículos estavam filmadoras na mão, filmando-nos. Fizeram ameaça publicamente: “Vamos queimar esses ônibus com índios! Índios vagabundos! Ficam invadindo fazendas”. Disseram ainda: “Recebi orientação da Roseli do CNJ para fazer isso, cercar os senhores e filmar e tirar fotos. Isso não vai ficar assim não! Esses índios vão pagar pelos seus atos, invasores das fazendas! Por isso tiro fotos… Ninguém pode com nós! Nós que mandamos aqui. Vai acontecer do jeito que nós queremos, nunca vamos deixar os índios e nem a Funai invadir fazendas”.

O Guaiviry, onde Nísio foi morto, já havia sido atacado em outras oportunidades. Uma postura terrorista das organizações criminosas, que visam criar um ambiente de medo e de terror. Relatam as mulheres na aldeia que tiveram que suplicar para seus filhos não serem mortos, sob mira de espingardas e revolveres.

A mira dos pistoleiros têm sido os caciques, lideres, articuladores. Matam quem acha que se destaca no grupo. Com relação a isso, os fazendeiros têm tido pouco sucesso quando tentam “amedrontar” os índios. Todos os lideres entrevistados relativizavam tanto o medo, quando o poder que na nossa sociedade espera-se ter sido depositado aos caciques. Os lideres são mais uma “ponta de lança”, como explica Almeida, das reivindicações de grupos domésticos, famílias extensas que depositam nessas personalidades confiança, e por isso, em nome deles falam.

Não significa que eles devem obedecer ou seguir ordem os lideres ou chefes. Uma chefia feita mais pelo respeito e pela palavra. Ao mesmo tempo, um respeito que é transmitido. Hoje, Valmir, filho de Nísio, tem se colocado como porta voz do grupo – e foi participar, por exemplo, de uma reunião organizada pelo Ministério Público Federal com os fazendeiros que possuem terra no entorno da área reivindicada pelos índios.

Quando se fala em Guaiviry, a conexão entre os guarani aponta o local da família de Nísio. A luta pela terra é insistente, é a vida deles. “Já tenho uma semente para quando eu for para lá, quando sair a terra”, diz uma velha kaiowa na reserva de Amambai. A situação de tensão permanente faz com que arrisquem suas vidas. Foi assim, no início do mês de novembro, quando o grupo liderado por Nísio entrou na área reivindicada. Entraram numa tarde, apos terem percebido, ao longo da noite, a intensa movimentação de pistoleiros. E, após três semanas ali, no dia 17, um ônibus que levava apoio e mantimentos foi cercado, o motorista ameaçado e a agenda de contatos roubada. Foi o sinal do ataque e que estava definido para ocorrer no dia 18.

Planejado, avisado, agendado. E, até hoje, impune.

Desaparecimento. Sumir com o corpo sem deixar vestígios. A ausência provocada pela morte certa, porém, sem os ritos fúnebres, provoca um temor ainda mais assustador entre os guaranis. Isso ocorreu em 31 de outubro de 2009, em um ataque ao tekohá Ypoí, com o desaparecimento dos professores Jenivaldo e Rolindo – o corpo de Jenivaldo foi encontrado no rio Ypo’í, sete dias depois, e Rolindo segue desaparecido. Em dezembro do mesmo ano, o tekohá Pyelito kue-Mbarakay onde houve a ameaça diante das autoridades, foi invadido por um bando de pistoleiros. Arcelino Teixeira, 22 anos, ficou ferido, e sua mãe disse ter visto o corpo, ensanguentado, no chão. Mas o corpo nunca apareceu. Nísio é o caso mais recente dessa série de atrocidades impunes.

A Lua nova apareceu em um céu azul claro, trazendo breu a acampamento. Reunidos em frente a uma casa, a comunidade guarani conversa. Um jovem à minha frente tem sua filha, com alguns meses, no colo. Essa paz bucólica é interrompida com três estrondos secos e altos, vindo da direção da luz no morro. “É tiro? Índio caçando?”, pergunto. “Não, é o fazendeiro ali na fazenda”, ele responde, apontando na direção de uma luz no morro ao lado, após o rio. “Todo dia a noite ele dá tiro. É para nos assustar.” Sinto tensão, mas de uma forma um tanto solitária – e se esses tiros fossem na direção do acampamento? Os guaranis, já mais acostumados, não se espantam tanto. “É assim que a gente vive”, diz o jovem.

Sofrimento. Falta de liberdade. “A gente tem medo por causa das ameaças”, diz uma liderança. “A gente esta reivindicando as nossas terras na base do sofrimento”, segue. “Antes eram ameaças. Mas elas estão sempre se tornando realidade.” Ele vive sob tensão. Seu acampamento, um punhado de mata em frente a um mar de soja, já foi atacado varias vezes, e seu irmão vive com proteção especial do governo federal, por vezes, tendo que “dar um tempo” fora da região.

O que está acontecendo aqui com vocês?, pergunto. “A gente está vivendo um genocídio aqui. O espaço é vida para nós, e querem acabar com o nosso espaço. Mais de 20 lideranças já foram assassinadas. Estão nos perseguindo. Antes, levaram a gente pra chiqueiros. Para chiqueirar a gente mesmo. Querem eliminar os kaiowa”, diz o jovem, quase trinta anos, pai de dois filhos. Pede para não ser identificado, cita apenas seu nome guarani – falar a língua materna, aqui, serve também como uma forma de proteção e de união.

“A política do país nos discrimina. É um genocídio, extermínio. Querem exterminar com a gente. Querem apagar a gente do país. Mas nosso tupã não deixou . Há muita violência. Muita matança. Mas a nossa luta é pacifica. Movimentamos diante das leis que nos favorecem. Os kaiowa guarani não são matadores, aquele que mata, aquele que odeia pessoas. O kaiowa guarani é aquele que se identifica com gente, que tem pensamento, que ama também. Se for, ou se não for indígena”, reflete.

“E não vamos desistir de viver, vamos continuar a existir.”

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