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O Caso da usina de Belo Monte
É verdade que Belo Monte inundará metade da área originalmente planejada, mas isso se dará à custa de mais de 100 km de rio que viverá uma seca eterna. Nesse trecho estão localizadas duas comunidades indígenas e várias ribeirinhas, todas dependentes das águas do Xingu para se alimentar, se locomover e ter alguma renda.
por Biviany Rojas, Raul Silva Telles do Valle
Há aproximadamente 30 anos, ainda sob a tutela de um governo militar, o Brasil dava um importante passo para a construção do Estado Democrático de Direito que se consolidaria anos mais tarde: era aprovada a Lei da Política Nacional do Meio Ambiente (Lei 6938/81) que, entre outras coisas, instituiu entre nós o procedimento de avaliação de impacto ambiental de grandes obras e projetos. De lá para cá, o licenciamento se transformou no principal instrumento da política ambiental brasileira e um símbolo da nova democracia. Não só possibilita uma minuciosa análise das consequências que um projeto pode trazer, como abre a possibilidade de participação formal da sociedade civil no processo decisório por meio das audiências públicas. Sua institucionalização trouxe a esperança de que projetos mal feitos não seriam mais empurrados goela abaixo da sociedade, como foi o caso da hidrelétrica de Tucuruí, no Pará, ou da rodovia Transamazônica, mas simplesmente arquivados.
Mas eis que a história vem nos pregar peças. Em pleno século XXI, em meio ao mais longo período democrático da vida brasileira, com um governo popular no poder, ressurge das catacumbas do regime militar o fantasma da usina hidrelétrica de Belo Monte, a ser construída no rio Xingu, no Pará.Para quem não conhece, Belo Monte é o “remake” de um projeto de engenharia dos anos 1970, que previa a construção de seis grandes hidrelétricas ao longo do rio Xingu, um dos rios mais ricos em diversidade social e ambiental do mundo. O conjunto de barragens alagaria quase 20 mil km2 – equivalente ao tamanho do Estado de Sergipe – e, além de destruir o rio, desalojaria grande número de comunidades indígenas e ribeirinhas. A joia mais importante dessa coroa de barragens era Kararaô, que sozinha poderia gerar até 11 mil MW, uma enormidade de energia. Ocorre que os Kayapó, povo indígena que domina boa parte do médio e baixo curso do Xingu, e por isso mesmo os principais afetados pelo projeto, não gostaram dessa história. Auxiliados pelo nascente movimento socioambientalista brasileiro, promoveram em 1989 a primeira grande manifestação indígena contra o governo do período democrático. O Io Encontro dos Povos da Floresta, ocorrido em Altamira (PA), teve grande repercussão mundial, o que fez com que os financiadores internacionais revissem sua posição e o projeto morresse, pois o país não tinha condição, na época, de custear sozinho essa aventura.
Kararaô ressurgiria em 2003 com novo nome e nova roupagem. Agora Belo Monte, a hidrelétrica não alagaria tanta área e, em teoria, não viria acompanhada de outras cinco barragens. A mágica se deveu a mudanças no projeto de engenharia e de estratégia política. Sob o aspecto técnico trocou-se uma grande barragem por duas menores, sendo que uma delas tem a função de desviar o rio Xingu de seu curso natural, empurrando-o para um grande canal artificial que o devolverá ao seu leito mais de 100 km depois. Com isso, aproveita-se um desnível geológico para gerar energia. Assim, o lago que antes teria mais de 1.200 km2 passou a ter pouco menos de 600 km2, ainda assim uma área maior que a do município de Porto Alegre.
Essa mudança de projeto decorreu da percepção dos dirigentes da Eletrobrás de que a sociedade já não toleraria mais casos como o da hidrelétrica de Balbina, no Amazonas, nos quais grandes áreas de floresta tropical são inundadas e milhares de pessoas são imediatamente desalojadas. Por essa razão, não só alteraram o arranjo da obra, como fizeram aprovar no Conselho Nacional de Política Energética (CNPE) uma resolução que aponta Belo Monte como o único aproveitamento hidrelétrico a ser realizado no rio Xingu. Ou seja, já não existiriam as demais hidrelétricas originalmente planejadas.
Olhando assim, parece uma grande vitória da sociedade. Afinal, o projeto foi remodelado para gerar a mesma quantidade de energia com muito menos impacto. E as demais hidrelétricas não serão construídas, tudo em nome do respeito à biodiversidade e às populações indígenas que vivem à beira do Xingu. É verdade que Belo Monte inundará metade da área originalmente planejada, mas é também verdade que isso se dará à custa de mais de 100 km de rio que viverá uma seca eterna, pois mais de 80% da água que passa por lá será desviada para gerar energia. Nesse trecho seco (equivalente à distância entre São Paulo e Campinas) estão localizadas duas comunidades indígenas (Arara da Volta Grande e Paquiçamba) e várias comunidades ribeirinhas, todas diretamente dependentes do rio para se alimentar, e gerar alguma renda, sobretudo com a pesca. Nesse mesmo trecho há uma grande diversidade de vida aquática, incluindo mais de uma dezena de espécies de peixes endêmicas, que só existem nessa área.
Impactos socioambientais
Por incrível que pareça, as pessoas e os ambientes existentes nessa região, chamada de Volta Grande, não são considerados pelos estudos ambientais como diretamente afetados pela obra. Impactados são apenas os que ficarão embaixo d’agua. Os que ficarão sem água nada sofrerão, segundo os empreendedores, pois a vida aquática pode sobreviver perfeitamente com apenas 20% da água que sempre teve. Porém, parecer assinado pela equipe técnica do Instituto Brasileiro dos Recursos Renováveis e do Meio Ambiente (Ibama), órgão responsável pelo licenciamento, indica que os estudos realizados não apresentam “informações que concluam acerca da manutenção da biodiversidade, navegabilidade e condições de vida das populações do TVR (trecho de vazão reduzida)”. Em outras palavras, nada garante que essas pessoas terão condições mínimas de sobrevivência após o fechamento do rio.
Mas não é só. Mesmo alagando uma área menor, a usina ainda vai alcançar parte da cidade de Altamira, sobretudo os bairros mais pobres. Com isso, pelo menos 20 mil pessoas deverão ser deslocadas, número que pode aumentar com uma contagem mais acurada. Some-se a isso a chegada de mais de 100 mil pessoas a uma região com serviços públicos precários e repleta de conflitos fundiários, e pode-se imaginar o impacto sobre as populações locais.
Ocorre que os problemas de Belo Monte não são apenas ambientais, mas também econômicos. As estimativas mais realistas avaliam que a obra custará em torno de R$ 30 bilhões, e o próprio BNDES, principal financiador da obra, admite que serão pelo menos R$ 25,9 bilhões. Isso porque, além das ações necessárias para tentar mitigar os problemas socioambientais criados, será necessário mobilizar uma megainfraestrutura numa região razoavelmente remota, movimentar mais terra do que o que foi necessário para construir o canal do Panamá e instalar turbinas suficientes para gerar 11 mil MW de energia.
O que poucos sabem é que durante boa parte do ano (entre 6 e 8 meses) a maioria das turbinas instaladas ficaria ociosa. Ou seja, não geraria energia. Segundo cálculos de especialistas do setor, a potência máxima assegurada seria de apenas 1.172 MW, ou quase dez vezes menos que a potência instalada e bem abaixo do que vem sendo assumido pelo empreendedor. Isso porque o Xingu, como quase todos os rios amazônicos, tem uma enorme variação de vazão ao longo do ano, diminuindo drasticamente de volume nos meses de seca, algo que só vem sendo acentuado com o acelerado desmatamento de suas cabeceiras. Somando-se a energia gerada em meses de seca e de cheia, a potência média seria de 4.571 MW.
Alguém poderia perguntar: mas essa flutuação não acontece com todas as hidrelétricas, já que quase todos os rios têm épocas de cheia e vazante? Não nessa magnitude. Boa parte das hidrelétricas acumula água durante a época de chuvas para utilizá-la na época de seca, de forma que a energia firme, ou seja, aquilo que é efetivamente produzido durante todos os meses do ano, é proporcionalmente maior. Belo Monte, porém, não terá reservatório de acumulação, exatamente por alagar uma área menor.
Enquanto isso, o Estado de Direito submerge
Estudos elaborados em 2006 por um grupo de pesquisadores ligados ao Instituto de Tecnologia da Aeronáutica (ITA)1, usando uma abordagem econômico-ambiental e tendo como base custos de construção bastante inferiores aos atuais, indicam que para essa energia firme a obra é economicamente inviável. Ou seja: não vale a pena gastar tanto dinheiro para ter tão pouca energia assegurada. Mas fazem um alerta: se for construída posteriormente outra usina rio acima, que guardaria água para Belo Monte, ambas se tornariam economicamente viáveis. Isso sem levar em consideração os custos socioambientais, claro, que afinal sempre são externalizados.
Essa realidade mostra o cinismo da decisão do CNPE, colegiado no qual a vaga da sociedade civil jamais foi preenchida. Belo Monte jamais será uma estrela solitária no rio Xingu. Sua construção precipitará, de forma iniludível, a instalação de outras barragens rio acima. E essas, para se justificarem, inevitavelmente terão que alagar extensas áreas, bem no coração de um dos maiores corredores de áreas protegidas do mundo.
Assim mesmo, poucos foram os investidores privados que se arriscaram a concorrer no leilão de concessão da obra, pois, ciosos que são com seus recursos, não podem esperar mais 15 ou 20 anos para que outra hidrelétrica seja construída e o investimento passe a dar retorno. Por essa razão, os sócios majoritários de Belo Monte são todos empresas públicas (do grupo Eletrobrás) e fundos de pensão de empresas estatais (sobretudo do Banco do Brasil e da Caixa Econômica Federal), fartamente regados a financiamento público do BNDES. Detalhe: uma Medida Provisória aprovada no ano passado autoriza o Tesouro a socorrer o banco caso receba o calote desse empréstimo! Será uma festa para as empreiteiras de sempre, que mais uma vez surfarão no capitalismo à brasileira, no qual o risco é público e o lucro, privado.
O caso Belo Monte está se tornando emblemático não só por seu histórico ou por suas consequências socioambientais e econômicas. Ele também vem demonstrando, com incrível crueza, as fragilidades de nosso Estado de Direito, deixando feridas que provavelmente levarão muito tempo para fechar. Ao longo do processo de licenciamento, dois diretores técnicos e um presidente do Ibama pediram demissão, em momentos diferentes, alegando coerção por parte dos andares de cima do Governo Federal para que a licença saísse o quanto antes e de qualquer forma. A licença prévia, concedida em fevereiro de 2010, foi assinada pelo presidente do órgão ambiental, mesmo havendo um parecer de sua equipe técnica, emitido dois dias antes, que afirmava não haver “elementos suficientes para atestar a viabilidade ambiental do empreendimento”.
Na Fundação Nacional do Índio (Funai), chamada a se manifestar sobre o que aconteceria com as populações indígenas, não foi diferente. Após uma equipe técnica emitir um parecer de mais de cem páginas apontando grandes lacunas nos estudos e um alto grau de incerteza com relação ao destino dos índios, sobretudo aqueles que vivem em Volta Grande, um presidente interino assinou uma manifestação de uma página dizendo que estava tudo certo. Pior. Passou a afirmar, orientado pela Advocacia Geral da União, que as populações indígenas não serão afetadas, já que nenhuma de suas áreas será alagada. Assim, não caberia a exigência constitucional de realização de consulta prévia com os povos impactados, o que poderia tomar mais tempo.
Arbitrariedade administrativa documentada
Nunca antes na história deste país se viu um caso de arbitrariedade administrativa tão bem documentado. Técnicos competentes e compromissados, contratados durante a fase de reestruturação do setor público, promovida pelo governo Lula, colocaram seus empregos em risco assinando pareceres contrários à liberação da obra. Mas não só seus chefes fingiram que não leram como, infelizmente, o Judiciário também o fez.
Pouco menos de um mês antes da realização do leilão para a concessão da obra, o Ministério Público Federal ingressou com duas ações civis públicas, que se somaram a outras quatro já em curso, demonstrando a ilegalidade da licença concedida. Pedia o cancelamento do certame, já que para ele ocorrer era necessário o atestado de viabilidade ambiental do empreendimento. E, nesse caso, a menos que se considerasse que os presidentes dos órgãos envolvidos são mais experts que seus próprios técnicos, ele não existiria.
Dias antes do leilão, o juiz federal de Altamira emitiu duas decisões irretocáveis, com várias laudas demonstrando, ponto por ponto, as contradições entre os pareceres técnicos e as decisões políticas. Anulou a licença, afinal, decisões arbitrárias são contra a lei. Só que essas liminares subsistiram por poucas horas. Com base numa lei que lhe permite suspender os efeitos de liminares caso as julgue ameaçadoras da “ordem pública”, sem que precise apontar qualquer equívoco jurídico do juiz de primeiro grau, o presidente do TRF 1a Região derrubou ambas as decisões alegando, simplesmente, que a obra é importante. Corrigir o desmando administrativo de um órgão acossado politicamente pelas altas esferas do poder não lhe pareceu importante. Resguardar os direitos de populações indígenas e ribeirinhas invisibilizadas por uma mentira oficial, menos ainda.
Com o Judiciário fora do jogo, o empreendedor entendeu que o céu é o limite. Passou a pressionar o Ibama para que liberasse rápido a licença de instalação para que a obra pudesse começar. Só que para obter o documento teria de cumprir uma série de condições, várias delas complexas, como a retirada de grileiros de algumas terras indígenas ou a instalação de uma infraestrutura de saúde, educação e segurança nas cidades que receberão as hordas de migrantes. Isso leva tempo e custa caro. Por isso, seguindo o exemplo das usinas do rio Madeira, o empreendedor pleiteou a emissão de uma “licença parcial”, que não existe na legislação ambiental, mas que permite ir adiantando parte da obra – a instalação dos canteiros – enquanto “se vai cumprindo” as condicionantes.
Em janeiro de 2011, a licença de instalação parcial foi emitida sem que nem mesmo as poucas condicionantes eleitas pelo Ibama como indispensáveis de ser cumpridas antes de começar qualquer obra tivessem de fato sido realizadas. Enquanto estas linhas foram escritas, se aguardava uma decisão de um juiz federal de Belém, mas com a certeza de que se ela viesse seria rapidamente derrubada no tribunal.
Portanto, o caso Belo Monte vem se mostrando um momento de inflexão em nosso regime democrático. Em prol de uma obra de viabilidade, no mínimo, duvidosa, estamos assistindo à destruição do sistema de licenciamento ambiental com a total conivência de um Judiciário permeado por interesses políticos e dominado por um discurso desenvolvimentista. Há 30 anos falaríamos que era culpa dos militares. Hoje, infelizmente, não temos desculpas
Biviany Rojas
Advogada e cientista política, mestre em Ciências Sociais pelo CEPPAC/UnB e assessora do Programa de Política e Direito do Instituto Socioambiental.
Raul Silva Telles do Valle
Advogado, mestre em Direito Econômico pela USP e coordenador adjunto do Programa de Política e Direito do Instituto Socioambient
1 SOUZA JR., Wilson C. et al. Custos e benefícios do complexo hidrelétrico de Belo Monte: uma abordagem econômico-ambiental. CSF, série técnica, edição no 4, março de 2006.