segunda-feira, 31 de julho de 2023

Assombrados pelo passado: Hidrelétrica Binacional no rio Madeira, na divisa Brasil-Bolívia em Guajará-Mirim


  

 Município de Guajará-Mirim (contorno em azul), separado da Bolívia pelo rio Madeira. Áreas em rosa são Terras Indígenas que serão afetadas pela Binacional. O ponto vermelho é a sede do município e a região onde se prevê a construção da usina hidrelétrica Binacional Brasil-Bolívia no rio Madeira.

Terras Indígenas no mapa no Município de Guajará-Mirim que serão impactadas: 

  1. Pacaas Novas, Situação Regularizada, Área (ha)279.906,38, Restrição Restrição Total; 
  2. Rio Negro Ocaia, Situação Declarada, (ha) 235.070,00, Restrição Total
  3. Uru-Eu-Wau-Wau, Situação Regularizada, Área (ha)1.867.117,80, Restrição Restrição Total

 Eventos em Belém (PA) podem encobrir a discussão sobre um novo projeto hidrelétrico na Amazônia: hidrelétrica binacional – Brasil – Bolívia, no rio Madeira. Organizações da Sociedade Civil denunciam.

 Telma Monteiro        

Entre os dias 04 e 06 de agosto acontecerá, em Belém (PA), os Diálogos Amazônicos, evento criado pela Secretaria da Presidência da República e, em seguida, nos dias 08 e 09 de agosto, os oito chefes de Estado dos países amazônicos deverão discutir o futuro da Amazônia, na Cúpula da Amazônia, e formar entendimentos para a COP 28. No entanto, esses eventos podem servir, também, para disfarçar uma discussão que acontecerá no dia 08 de agosto, em Guajará Mirim, (RO), para apresentar a alguns poucos convidados o novo projeto de destruição da Amazônia: a construção de uma hidrelétrica binacional – Brasil-Bolívia – no rio Madeira.

A história da Hidrelétrica binacional no rio Madeira

No primeiro mandato do governo Lula, a sociedade civil, pesquisadores, ministério público e ambientalistas tiveram que enfrentar a sanha de projetos de infraestrutura na Amazônia, em especial as usinas do rio Madeira: Santo Antônio e Jirau. Já, em 2006, estavam previstas as duas hidrelétricas no Brasil e uma binacional na divisa com a Bolívia. Em 2009, no segundo mandato de Lula, uma delegação representando a Bolívia e o Brasil foi a Washington para denunciar no Comitê de Direitos Humanos da OEA os impactos que o represamento do rio Madeira provocariam em terras ribeirinhas bolivianas e brasileiras.  Impactos que hoje se refletem na reprodução dos peixes, na inundação a montante causada pelo lago da hidrelétrica de Jirau em solo boliviano, nas terras indígenas, nos grupos de índios isolados e nas populações ribeirinhas.

Em 2007, um memorando de entendimento foi assinado pelo Ministério de Minas e Energia do Brasil e pelo Ministério de Hidrocarbonetos e Energia da República da Bolívia, para realização dos “Estudos de Inventário da Bacia Hidrográfica do rio Madeira no trecho binacional Brasil – Bolívia. Esse memorando deu origem a um outro protocolo adicional, assinado em julho de 2015, pelos dois países, para a retomada dos estudos.

Entre os dias 10 e 11 de junho passado aconteceu a VI Reunião do Comitê Técnico Binacional Brasil-Bolívia para dar continuidade ao projeto de integração e complementação energética entre os dois países e o projeto da hidrelétrica binacional. A Eletrobras, então, retomou as tratativas para a construção da Hidrelétrica Binacional no rio Madeira, com aval do governo brasileiro, em conjunto com a Empresa Nacional de Electricidad Bolivia (ENDE) e Banco de Desarrollo de América Latina (CAF), e estudos da Worley Parsons Engenharia Ltda., previstos para serem concluídos ainda em julho de 2023.

A região da bacia do Madeira já conta com um enorme passivo ambiental resultante dos impactos das duas outras hidrelétricas já construídas, Santo Antônio e Jirau. O Secretário Nacional de Transição e Planejamento, do Ministério de Minas e Energia, em parceria com a Eletrobras e a ENDE boliviana, então, elaboraram um Seminário Público, em Guajará-Mirim, Rondônia, no próximo dia 08 de agosto. Esse seminário pretende apresentar os resultados dos Estudos de Inventário Hidrelétrico Binacional no rio Madeira e seus afluentes, nos dois países, e acontecerá justamente durante a Cúpula da Amazônia.

As organizações da sociedade civil elaboraram uma carta dirigida aos presidentes do Brasil e da Bolívia em que denunciam a “coincidência” da reunião para apresentar os novos estudos da binacional, em Guajará-Mirim, Rondônia, na mesma ocasião em que as comunidades a serem afetadas estarão nos eventos de Belém, no Pará.  A carta também denuncia o avanço de mais projetos de barragens na bacia do rio Madeira. Se construída, a hidrelétrica binacional deverá atingir os territórios do Brasil e da Bolívia, novamente, e acumular mais impactos nos territórios do rio Madeira já afetados duramente pelas hidrelétricas Santo Antônio e Jirau.

Link para você assinar a carta das organizações contra a usina hidrelétrica binacional no rio Madeira:

https://docs.google.com/forms/d/e/1FAIpQLSez4dIjAKlx_uPzaHijCyVux5nLXF5piGOiuPOWfjU-X-wsRQ/viewform?usp=sf_link

quinta-feira, 29 de junho de 2023

O que estaria por trás da Ferrogrão?

A Ferrogrão tem o traçado paralelo à rodovia BR-163 e a construção demandaria muito mais que os 10 anos previstos nos estudos. Segundo o economista Cláudio Frischtak (1), a construção da Ferrogrão poderia levar, no mínimo, 21 anos ou até 29 anos, além de se inviabilizar financeiramente, pois o projeto apresentado a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) “subestima custos, riscos e tempo de execução”.

Diferentemente da construção de uma hidrelétrica, por exemplo, a ferrovia requer um uso intensivo de mão de obra muito variada, o que implicaria em conflitos sociais e econômicos. A contratação de trabalhadores oriundos de outras partes do país, com culturas e interesses diversos, pode levar ao esgarçamento das relações socioeconômicas. A infraestrutura pública dos 17 municípios que estão no caminho projetado para a Ferrogrão não comportaria essa migração. Nós estamos falando de colapso do sistema de saúde, da falta de escolas, da ocupação desordenada, do impacto do sistema produtivo e perda de renda e empregos. Não existem programas de mitigação previstos para os municípios que serão impactados.

Assim, nos perguntamos, por que construir uma ferrovia que pretende cortar a Amazônia pelo meio, causar impactos em 48 povos indígenas e em mosaicos de unidades de conservação e que tem custo estimado, já atualizado, de R$ 34,3 bilhões (2)? Qual empresa privada quereria embarcar nessa aventura que, segundo Frischtak, se for um projeto integralmente privado teria uma taxa interna de retorno de 1,56%, bem abaixo do que seria de esperar de um empreendimento desse porte. A resposta pode estar no incremento da mineração e no número de processos minerários ativos em todo o percurso da Ferrogrão, na bacia hidrográfica do Tapajós/Jamanxim.

No Estudo de Impacto Ambiental/Relatório de Impacto Ambiental (EIA/Rima) está escrito: “É mister informar ainda que o traçado proposto da EF-170 não impactará diretamente nenhuma categoria de Unidade de Conservação (federal, estadual ou municipal) e Terras Indígenas. (3)” (Grifo meu)

Como não? Nessa região da área de estudo serão necessárias 261 passagens de gado e fauna, estações de transbordo e obras de arte para suplantar obstáculos do relevo, o que prova ser impossível afirmar que a EF-170 não produzirá impactos. Há, sim, passivos ambientais que estão sendo desconsiderados. A maior parte deles (consta no EIA/RIMA a existência desses passivos (4)) está em Áreas de Preservação Ambiental (APP); 521 pontos estão no estado do Pará, dos quais 387 nos municípios de Itaituba e Novo Progresso. Passivos ambientais que acrescentados dos impactos decorrentes da implantação e funcionamento da ferrovia podem transformar a região em um deserto. Devemos somar a isso o fato de que serão afetados o Cerrado e a Amazônia, dois biomas brasileiros, e suas unidades de conservação, imprescindíveis para a manutenção do equilíbrio do clima e da sobrevivência dos 48 povos indígenas que serão afetados, conforme afirma a representação do Ministério Público Federal (MPF) ao Ministério Público do Tribunal de Contas da União (MPTCU), em 2021.

Há que se mencionar os conflitos sociais e econômicos com o aumento de populações de costumes diversos, levadas pela facilitação do acesso a áreas em processo de degradação, agravados com a construção das estruturas da ferrovia. Fica evidente no EIA que os problemas ambientais detectados ao longo do traçado da EF-170 e os impactos ambientais causados pela crescente antropização e pela mineração ilegal foram listados e adicionados como passivos ambientais. Há, claramente, a intenção de criar um efeito causal anterior à Ferrogrão, isentando tanto a empresa responsável pela construção como o governo de responsabilidades pelos impactos negativos que a ferrovia venha a causar.

Os estudos tratam esses passivos, apenas, como obstáculos que vão “interferir na superestrutura da EF-170”. “As áreas degradadas ou que estão em desacordo com a Lei Federal nº 12.651/2010, e alterações, em especial as APPs, foram tratadas como passivos ambientais. Foram levantadas um total de 723 pontos distintos ao longo da EF-170. Em destaque, devido à escala de paisagem em relação à degradação, os passivos ambientais ocasionados por atividades de mineração deverão ser tratados de forma sistêmica, através da execução do seguintes Programas Ambientais: Controle de Processos Erosivos e Recuperação de Áreas de Degradadas, evitando assim que esse tipo de antropização possa interferir na superestrutura da EF-170”.

A abordagem, no EIA, sobre o rio Tapajós e os possíveis impactos da construção da Ferrogrão é claramente uma prévia do que esperar. O rio Tapajós está considerado como parte de um complexo hidroviário – Teles Pires, Juruena, Itaituba, Santarém, rio Amazonas - que deve levar a mais estruturas portuárias. Embora não completamente navegável, ainda, nas dimensões necessárias para dar vazão à proposta de demanda da Ferrogrão, o rio Tapajós já é considerado pelos propositores, indispensável, e tem projeto de rebaixamento da sua calha para comportar o calado das barcaças.

A foz do rio Tapajós é na cidade de Santarém, que está a 950 km de Belém. O Tapajós tem trechos navegáveis que se conectam com os rios Teles Pires e Juruena e respectivas bacias hidrográficas. O projeto da Ferrogrão prevê alcançar o porto de Itaituba, que fica na margem direita do Tapajós e junto com o porto em Santarém, na foz do rio Amazonas, formará um complexo de estruturas que integrará uma grande hidrovia (5).

O traçado da Ferrogrão está previsto para passar justamente não Área de Influência da BR-163, construída nos anos 1970, durante a ditadura militar, com o objetivo de “integrar” o norte ao sul do Brasil. O lema era “integrar para não entregar”, conceito que revelava uma intenção de explorar a Amazônia sob o pretexto de que forças internacionais queriam se apropriar das suas riquezas minerais. A construção da BR-163 induziu a ocupação do bioma Amazônico e do Cerrado com o desmatamento, o avanço da agropecuária e a exploração minerária. Essa ocupação se intensificou sob a influência da Lei Estadual Nº 7.243, de 2009 (6), que estabeleceu a Área de Influência da BR-163 chamada de ZEE-Zona Oeste, em que os dois biomas acolhem as bacias hidrográficas dos rios Teles Pires, Tapajós, Xingu e Amazonas (7).

Exploração minerária no traçado da Ferrogrão: a grande “vocação metalogenética” e a Província Mineral do Tapajós

Conforme descrito no EIA, constam no Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM) 489 registros de minério de ouro, dos quais 348 são autorizações de pesquisa, 89 de lavras garimpeiras, 77 licenciamentos e outros.

Em termos de substâncias, tem-se a seguinte configuração: 5 registros de água mineral, 1 registro de apatita, 127 registros de areia, 15 registros de argila, 15 registros de bauxita, 37 registros de calcário, 37 registros de cascalho, 25 registros de cassiterita, 4 registros de caulim, 17 registros de diamante, 2 registros de fosfato, 1 registro de galena, 20 registros de granito, 3 registros de laterita, 2 registros de minério de alumínio, 2 registros de minério de chumbo, 99 registros de minério de cobre, 11 registros de minério de ferro, 3 registros de minério de manganês, 489 registros de minério de ouro, 2 registros de minério de prata, 2 registros de minério de vanádio, 1 registro de quartzo, 1 registro de saibro e 2 registros de topázio, além de 11 registros de dados não cadastrados. O Mapa 15 apresenta a localização dos processos minerários existentes na AE.” (8) ...

 “requerimentos de lavra: 210 requerimentos de lavra garimpeira, 60 requerimentos de licenciamento, 83 requerimentos de pesquisa, 2 requerimentos de registro de extração e 4 registros de dados não cadastrados. Isso demonstra a grande vocação metalogenética que a região Norte do Mato Grosso e a região denominada Província Aurífera do Tapajós, localizada dentro da Província Tapajós-Parima, Domínio Tapajós, na região que compreende Castelo dos Sonhos/PA até Itaituba/PA, possuem.” (9) (Grifo meu).

A questão fundiária (10) e os interesses por trás da Ferrogrão

Uma das regiões no Bioma Amazônico, no interflúvio Xingu-Tapajós, tem uma grande concentração de florestas, de povos tradicionais, comunidades indígenas e fragilidade fundiária. Essa fragilidade inclui terras indígenas não demarcadas, unidades de conservação não regularizadas e assentamentos da reforma agrária ambientalmente diferenciados, sem proteção e abandonados, numa região em que ocorre pressão do setor ilegal dos setores madeireiro, mineral e agropecuário. Tudo isso somado à grande quantidade de “documentos fundiários podres” - títulos de propriedade rural nulos ou fraudulentos, muitas vezes referentes a terras griladas (11) - que são utilizados nos crimes associados à grilagem de terras públicas com a participação de agentes privados e públicos, exploração de madeira e mineração ilegal, especulação imobiliária, acesso ao crédito agrícola e lavagem dinheiro.

O Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon) (12), com apoio do Prof. Girolamo Domenico Treccani, professor de Direito Agrário da Universidade Federal do Pará (UFPA), mostrou que entre os títulos de terra cancelados no Pará há uma área de floresta dez vezes maior do que a cidade de São Paulo.

“A investigação analisou 10.728 matrículas de imóveis canceladas nos cartórios por terem sido registradas ilegalmente e concluiu que pelo menos 332 realmente existem e poderiam voltar a integrar o patrimônio público. Porém, em 12 anos, apenas um imóvel foi retomado pelo Estado do Pará”.

“Por isso, esses números já evidenciam dois grandes problemas nos registros dos cartórios: terras matriculadas em sobreposição a outras ou áreas fantasmas, que só existem no papel. Enquanto o primeiro caso pode ser relacionado com a tentativa de grilagem, o roubo de terras públicas, o segundo geralmente é motivado pela obtenção de empréstimos bancários. Ou seja: as pessoas registram nos cartórios terras que não existem para usá-las como hipoteca (13).”

Uma lei federal dá autoridade ao corregedor-geral da Justiça para declarar inexistência e cancelar a matrícula e o registro de imóvel rural. Diante dessa possibilidade, a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), uma das defensoras da Ferrogrão, acionou o Supremo Tribunal Federal (STF) contra essa lei federal, denotando um apoio aos títulos podres ilegais.

Depois que o registro é feito, tem validade legal até que seja realizado seu cancelamento. Ou seja, a área pode ser vendida, usada como garantia em empréstimos, ter planos de manejo para exploração madeireira e até projetos de créditos de carbono. Por isso, enquanto o poder público não retomar as áreas griladas, seguirá incentivando crimes ambientais, conflitos por terra e ameaçando direitos territoriais de comunidades tradicionais”.

Qual pode ser a relação e os interesses entre a construção da Ferrogrão e os “títulos podres”? A resposta é simples: esses títulos que equivalem a 73% do Estado do Pará estariam em grande parte na área de influência da ferrovia. Se o poder público, através da lei federal que dá poderes ao corregedor-geral de Justiça de cancelar esses títulos, não retomar essas áreas, elas servirão para aumentar o desmatamento com a expansão agropecuária e o recrudescimento da mineração na região.

O documento do Imazon traça uma relação causal entre áreas desmatadas e número de títulos cancelados nos municípios São Felix do Xingu e Altamira que concentram 45,6 milhões de hectares.

O Ministério Público do Estado do Pará, o Tribunal de Justiça do Estado do Pará e a Universidade Federal do Pará desenvolveram uma ferramenta chamada Sistema Integrado de Informações Fundiárias do Pará (SIG Fundiário/PA) que sistematiza e analisa as informações dos órgãos fundiários. Essa ferramenta pode ser fundamental para analisar a faixa de 100 km de cada lado no traçado da Ferrogrão.

Bacias do Tapajós e Xingu e o traçado da EF-170 (14)

Corredores ecológicos são porções de ecossistemas naturais ou seminaturais que ligam unidades de conservação e permitem a interação de genes para recolonizar áreas degradadas (15). Os técnicos responsáveis por esse capítulo do EIA/RIMA optaram por estudar e interligar as sete Unidades de Conservação e a Terra Indígena que estão na bacia hidrográfica do rio Xingu e na bacia do rio Tapajós – a leste e oeste do traçado previsto pelo projeto da Ferrogrão.

“Floresta Nacional de Itaituba II, Floresta Nacional do Trairão, Parque Nacional do Jamanxim, Floresta Nacional do Jamanxim, Floresta Nacional de Altamira, TI Baú, Reserva Biológica Nascentes da Serra do Cachimbo e Parque Estadual Cristalino. A identificação dos corredores ecológicos ocorreu por meio da técnica do caminho de menor custo (CMC) que identifica o melhor caminho com base em atributos pré-estabelecidos tomando como referência um ponto de origem e outro de destino” (16).

“Foram identificadas 9 UCs no buffer de 10 quilômetros do empreendimento (Mapa 26), sendo sete classificadas no grupo de Proteção Integral e duas de Uso Sustentável (Quadro 16). No estado do Pará estão quatro, todas de âmbito federal e gestadas pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). No Mato Grosso, as cinco UCs localizadas na AE são urbanas, de âmbito municipal, gerenciadas por suas respectivas prefeituras” (17).

Continua na terceira parte

Parte 1:

EXCLUSIVO: Com estudo de impacto ambiental fake, estrada de ferro que corta Amazônia vai a julgamento no STF

Notas:

1) https://oglobo.globo.com/opiniao/artigos/coluna/2023/05/ferrograo-nao-se-sustenta.ghtml

2) https://oglobo.globo.com/opiniao/artigos/coluna/2023/05/ferrograo-nao-se-sustenta.ghtml

3) CONCLUSÃO – PASSIVOS AMBIENTAISO que estaria por trás da Ferrogrão?

Estudo de Impacto Ambiental/Relatório de Impacto Ambiental (EIA/RIMA) da Ferrogrão: conflitosEstudo de Impacto Ambiental/Relatório de Impacto Ambiental (EIA/RIMA) da Ferrogrão: conflitos

A Ferrogrão tem o traçado paralelo à rodovia BR-163 e a construção demandaria muito mais que os 10 anos previstos nos estudos. Segundo o economista Cláudio Frischtak (1), a construção da Ferrogrão poderia levar, no mínimo, 21 anos ou até 29 anos, além de se inviabilizar financeiramente, pois o projeto apresentado a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) “subestima custos, riscos e tempo de execução”.

Telma Monteiro, para o Correio da Cidadania 

28/06/2023

Diferentemente da construção de uma hidrelétrica, por exemplo, a ferrovia requer um uso intensivo de mão de obra muito variada, o que implicaria em conflitos sociais e econômicos. A contratação de trabalhadores oriundos de outras partes do país, com culturas e interesses diversos, pode levar ao esgarçamento das relações socioeconômicas. A infraestrutura pública dos 17 municípios que estão no caminho projetado para a Ferrogrão não comportaria essa migração. Nós estamos falando de colapso do sistema de saúde, da falta de escolas, da ocupação desordenada, do impacto do sistema produtivo e perda de renda e empregos. Não existem programas de mitigação previstos para os municípios que serão impactados.

Assim, nos perguntamos, por que construir uma ferrovia que pretende cortar a Amazônia pelo meio, causar impactos em 48 povos indígenas e em mosaicos de unidades de conservação e que tem custo estimado, já atualizado, de R$ 34,3 bilhões (2)? Qual empresa privada quereria embarcar nessa aventura que, segundo Frischtak, se for um projeto integralmente privado teria uma taxa interna de retorno de 1,56%, bem abaixo do que seria de esperar de um empreendimento desse porte. A resposta pode estar no incremento da mineração e no número de processos minerários ativos em todo o percurso da Ferrogrão, na bacia hidrográfica do Tapajós/Jamanxim.

No Estudo de Impacto Ambiental/Relatório de Impacto Ambiental (EIA/Rima) está escrito: “É mister informar ainda que o traçado proposto da EF-170 não impactará diretamente nenhuma categoria de Unidade de Conservação (federal, estadual ou municipal) e Terras Indígenas. (3)” (Grifo meu)

Como não? Nessa região da área de estudo serão necessárias 261 passagens de gado e fauna, estações de transbordo e obras de arte para suplantar obstáculos do relevo, o que prova ser impossível afirmar que a EF-170 não produzirá impactos. Há, sim, passivos ambientais que estão sendo desconsiderados. A maior parte deles (consta no EIA/RIMA a existência desses passivos (4)) está em Áreas de Preservação Ambiental (APP); 521 pontos estão no estado do Pará, dos quais 387 nos municípios de Itaituba e Novo Progresso. Passivos ambientais que acrescentados dos impactos decorrentes da implantação e funcionamento da ferrovia podem transformar a região em um deserto. Devemos somar a isso o fato de que serão afetados o Cerrado e a Amazônia, dois biomas brasileiros, e suas unidades de conservação, imprescindíveis para a manutenção do equilíbrio do clima e da sobrevivência dos 48 povos indígenas que serão afetados, conforme afirma a representação do Ministério Público Federal (MPF) ao Ministério Público do Tribunal de Contas da União (MPTCU), em 2021.

Há que se mencionar os conflitos sociais e econômicos com o aumento de populações de costumes diversos, levadas pela facilitação do acesso a áreas em processo de degradação, agravados com a construção das estruturas da ferrovia. Fica evidente no EIA que os problemas ambientais detectados ao longo do traçado da EF-170 e os impactos ambientais causados pela crescente antropização e pela mineração ilegal foram listados e adicionados como passivos ambientais. Há, claramente, a intenção de criar um efeito causal anterior à Ferrogrão, isentando tanto a empresa responsável pela construção como o governo de responsabilidades pelos impactos negativos que a ferrovia venha a causar.

Os estudos tratam esses passivos, apenas, como obstáculos que vão “interferir na superestrutura da EF-170”. “As áreas degradadas ou que estão em desacordo com a Lei Federal nº 12.651/2010, e alterações, em especial as APPs, foram tratadas como passivos ambientais. Foram levantadas um total de 723 pontos distintos ao longo da EF-170. Em destaque, devido à escala de paisagem em relação à degradação, os passivos ambientais ocasionados por atividades de mineração deverão ser tratados de forma sistêmica, através da execução do seguintes Programas Ambientais: Controle de Processos Erosivos e Recuperação de Áreas de Degradadas, evitando assim que esse tipo de antropização possa interferir na superestrutura da EF-170”.

A abordagem, no EIA, sobre o rio Tapajós e os possíveis impactos da construção da Ferrogrão é claramente uma prévia do que esperar. O rio Tapajós está considerado como parte de um complexo hidroviário – Teles Pires, Juruena, Itaituba, Santarém, rio Amazonas - que deve levar a mais estruturas portuárias. Embora não completamente navegável, ainda, nas dimensões necessárias para dar vazão à proposta de demanda da Ferrogrão, o rio Tapajós já é considerado pelos propositores, indispensável, e tem projeto de rebaixamento da sua calha para comportar o calado das barcaças.

A foz do rio Tapajós é na cidade de Santarém, que está a 950 km de Belém. O Tapajós tem trechos navegáveis que se conectam com os rios Teles Pires e Juruena e respectivas bacias hidrográficas. O projeto da Ferrogrão prevê alcançar o porto de Itaituba, que fica na margem direita do Tapajós e junto com o porto em Santarém, na foz do rio Amazonas, formará um complexo de estruturas que integrará uma grande hidrovia (5).

O traçado da Ferrogrão está previsto para passar justamente não Área de Influência da BR-163, construída nos anos 1970, durante a ditadura militar, com o objetivo de “integrar” o norte ao sul do Brasil. O lema era “integrar para não entregar”, conceito que revelava uma intenção de explorar a Amazônia sob o pretexto de que forças internacionais queriam se apropriar das suas riquezas minerais. A construção da BR-163 induziu a ocupação do bioma Amazônico e do Cerrado com o desmatamento, o avanço da agropecuária e a exploração minerária. Essa ocupação se intensificou sob a influência da Lei Estadual Nº 7.243, de 2009 (6), que estabeleceu a Área de Influência da BR-163 chamada de ZEE-Zona Oeste, em que os dois biomas acolhem as bacias hidrográficas dos rios Teles Pires, Tapajós, Xingu e Amazonas (7).

Exploração minerária no traçado da Ferrogrão: a grande “vocação metalogenética” e a Província Mineral do Tapajós

Conforme descrito no EIA, constam no Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM) 489 registros de minério de ouro, dos quais 348 são autorizações de pesquisa, 89 de lavras garimpeiras, 77 licenciamentos e outros.

“Em termos de substâncias, tem-se a seguinte configuração: 5 registros de água mineral, 1 registro de apatita, 127 registros de areia, 15 registros de argila, 15 registros de bauxita, 37 registros de calcário, 37 registros de cascalho, 25 registros de cassiterita, 4 registros de caulim, 17 registros de diamante, 2 registros de fosfato, 1 registro de galena, 20 registros de granito, 3 registros de laterita, 2 registros de minério de alumínio, 2 registros de minério de chumbo, 99 registros de minério de cobre, 11 registros de minério de ferro, 3 registros de minério de manganês, 489 registros de minério de ouro, 2 registros de minério de prata, 2 registros de minério de vanádio, 1 registro de quartzo, 1 registro de saibro e 2 registros de topázio, além de 11 registros de dados não cadastrados. O Mapa 15 apresenta a localização dos processos minerários existentes na AE.” (8) ...

 “requerimentos de lavra: 210 requerimentos de lavra garimpeira, 60 requerimentos de licenciamento, 83 requerimentos de pesquisa, 2 requerimentos de registro de extração e 4 registros de dados não cadastrados. Isso demonstra a grande vocação metalogenética que a região Norte do Mato Grosso e a região denominada Província Aurífera do Tapajós, localizada dentro da Província Tapajós-Parima, Domínio Tapajós, na região que compreende Castelo dos Sonhos/PA até Itaituba/PA, possuem.” (9) (Grifo meu).

A questão fundiária (10) e os interesses por trás da Ferrogrão

Uma das regiões no Bioma Amazônico, no interflúvio Xingu-Tapajós, tem uma grande concentração de florestas, de povos tradicionais, comunidades indígenas e fragilidade fundiária. Essa fragilidade inclui terras indígenas não demarcadas, unidades de conservação não regularizadas e assentamentos da reforma agrária ambientalmente diferenciados, sem proteção e abandonados, numa região em que ocorre pressão do setor ilegal dos setores madeireiro, mineral e agropecuário. Tudo isso somado à grande quantidade de “documentos fundiários podres” - títulos de propriedade rural nulos ou fraudulentos, muitas vezes referentes a terras griladas (11) - que são utilizados nos crimes associados à grilagem de terras públicas com a participação de agentes privados e públicos, exploração de madeira e mineração ilegal, especulação imobiliária, acesso ao crédito agrícola e lavagem dinheiro.

O Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon) (12), com apoio do Prof. Girolamo Domenico Treccani, professor de Direito Agrário da Universidade Federal do Pará (UFPA), mostrou que entre os títulos de terra cancelados no Pará há uma área de floresta dez vezes maior do que a cidade de São Paulo.

“A investigação analisou 10.728 matrículas de imóveis canceladas nos cartórios por terem sido registradas ilegalmente e concluiu que pelo menos 332 realmente existem e poderiam voltar a integrar o patrimônio público. Porém, em 12 anos, apenas um imóvel foi retomado pelo Estado do Pará”.

“Por isso, esses números já evidenciam dois grandes problemas nos registros dos cartórios: terras matriculadas em sobreposição a outras ou áreas fantasmas, que só existem no papel. Enquanto o primeiro caso pode ser relacionado com a tentativa de grilagem, o roubo de terras públicas, o segundo geralmente é motivado pela obtenção de empréstimos bancários. Ou seja: as pessoas registram nos cartórios terras que não existem para usá-las como hipoteca (13).”

Uma lei federal dá autoridade ao corregedor-geral da Justiça para declarar inexistência e cancelar a matrícula e o registro de imóvel rural. Diante dessa possibilidade, a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), uma das defensoras da Ferrogrão, acionou o Supremo Tribunal Federal (STF) contra essa lei federal, denotando um apoio aos títulos podres ilegais.

“Depois que o registro é feito, tem validade legal até que seja realizado seu cancelamento. Ou seja, a área pode ser vendida, usada como garantia em empréstimos, ter planos de manejo para exploração madeireira e até projetos de créditos de carbono. Por isso, enquanto o poder público não retomar as áreas griladas, seguirá incentivando crimes ambientais, conflitos por terra e ameaçando direitos territoriais de comunidades tradicionais”.

Qual pode ser a relação e os interesses entre a construção da Ferrogrão e os “títulos podres”? A resposta é simples: esses títulos que equivalem a 73% do Estado do Pará estariam em grande parte na área de influência da ferrovia. Se o poder público, através da lei federal que dá poderes ao corregedor-geral de Justiça de cancelar esses títulos, não retomar essas áreas, elas servirão para aumentar o desmatamento com a expansão agropecuária e o recrudescimento da mineração na região.

O documento do Imazon traça uma relação causal entre áreas desmatadas e número de títulos cancelados nos municípios São Felix do Xingu e Altamira que concentram 45,6 milhões de hectares.

O Ministério Público do Estado do Pará, o Tribunal de Justiça do Estado do Pará e a Universidade Federal do Pará desenvolveram uma ferramenta chamada Sistema Integrado de Informações Fundiárias do Pará (SIG Fundiário/PA) que sistematiza e analisa as informações dos órgãos fundiários. Essa ferramenta pode ser fundamental para analisar a faixa de 100 km de cada lado no traçado da Ferrogrão.

Bacias do Tapajós e Xingu e o traçado da EF-170 (14)

Corredores ecológicos são porções de ecossistemas naturais ou seminaturais que ligam unidades de conservação e permitem a interação de genes para recolonizar áreas degradadas (15). Os técnicos responsáveis por esse capítulo do EIA/RIMA optaram por estudar e interligar as sete Unidades de Conservação e a Terra Indígena que estão na bacia hidrográfica do rio Xingu e na bacia do rio Tapajós – a leste e oeste do traçado previsto pelo projeto da Ferrogrão.

“Floresta Nacional de Itaituba II, Floresta Nacional do Trairão, Parque Nacional do Jamanxim, Floresta Nacional do Jamanxim, Floresta Nacional de Altamira, TI Baú, Reserva Biológica Nascentes da Serra do Cachimbo e Parque Estadual Cristalino. A identificação dos corredores ecológicos ocorreu por meio da técnica do caminho de menor custo (CMC) que identifica o melhor caminho com base em atributos pré-estabelecidos tomando como referência um ponto de origem e outro de destino” (16).

“Foram identificadas 9 UCs no buffer de 10 quilômetros do empreendimento (Mapa 26), sendo sete classificadas no grupo de Proteção Integral e duas de Uso Sustentável (Quadro 16). No estado do Pará estão quatro, todas de âmbito federal e gestadas pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). No Mato Grosso, as cinco UCs localizadas na AE são urbanas, de âmbito municipal, gerenciadas por suas respectivas prefeituras” (17).

Continua na terceira parte

Parte 1:

EXCLUSIVO: Com estudo de impacto ambiental fake, estrada de ferro que corta Amazônia vai a julgamento no STF

Notas:

1) https://oglobo.globo.com/opiniao/artigos/coluna/2023/05/ferrograo-nao-se-sustenta.ghtml

2) https://oglobo.globo.com/opiniao/artigos/coluna/2023/05/ferrograo-nao-se-sustenta.ghtml

3) CONCLUSÃO – PASSIVOS AMBIENTAIS

4) PASSIVOS AMBIENTAIS EIA p. 55

5) EIA CARACTERIZAÇÃO DO EMPREENDIMENTO (NOVEMBRO/2020) p. 112

6) https://www.semas.pa.gov.br/legislacao/files/pdf/104132.pdf 

7) EIA CARACTERIZAÇÃO DO EMPREENDIMENTO (NOVEMBRO/2020) p. 123

8) EIA MEIO FÍSICO p.124

9) EIA MEIO FÍSICO p.125

10) Subsídios fornecidos por Tarcísio Feitosa, Licenciado em Ciências Exatas e Naturais Mestre em Agricultura Familiar e Desenvolvimento Sustentável pela UFPA/Embrapa (2009); Graduando em Direito pela Universidade Estácio de Sá no Rio de Janeiro; 2006 Goldman Prize Recipient South and Central America (Forests - Brazil)

11) https://www.brasildefato.com.br/2019/06/26/nova-lei-de-terras-do-para-permite-requentar-titulos-podres-e-favorece-grileiros

12) https://imazon.org.br/imprensa/para-so-teria-retomado-um-dos-mais-de-10-mil-imoveis-cancelados-por-suspeita-de-grilagem-nos-cartorios-em-12-anos/

13) https://imazon.org.br/imprensa/para-so-teria-retomado-um-dos-mais-de-10-mil-imoveis-cancelados-por-suspeita-de-grilagem-nos-cartorios-em-12-anos/ 

14) EIA ECOSSISTEMAS, p. 15

15) EIA ECOSSISTEMAS, p. 21

16) EIA ECOSSISTEMAS, p.22

17) EIA ECOSSISTEMAS, p.24

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4) PASSIVOS AMBIENTAIS EIA p. 55

5) EIA CARACTERIZAÇÃO DO EMPREENDIMENTO (NOVEMBRO/2020) p. 112

6) https://www.semas.pa.gov.br/legislacao/files/pdf/104132.pdf

7) EIA CARACTERIZAÇÃO DO EMPREENDIMENTO (NOVEMBRO/2020) p. 123

8) EIA MEIO FÍSICO p.124

9) EIA MEIO FÍSICO p.125

10) Subsídios fornecidos por Tarcísio Feitosa, Licenciado em Ciências Exatas e Naturais Mestre em Agricultura Familiar e Desenvolvimento Sustentável pela UFPA/Embrapa (2009)

Graduando em Direito pela Universidade Estácio de Sá no Rio de Janeiro.
2006 Goldman Prize Recipient South and Central America (Forests - Brazil)

11) https://www.brasildefato.com.br/2019/06/26/nova-lei-de-terras-do-para-permite-requentar-titulos-podres-e-favorece-grileiros

12) https://imazon.org.br/imprensa/para-so-teria-retomado-um-dos-mais-de-10-mil-imoveis-cancelados-por-suspeita-de-grilagem-nos-cartorios-em-12-anos/

13) https://imazon.org.br/imprensa/para-so-teria-retomado-um-dos-mais-de-10-mil-imoveis-cancelados-por-suspeita-de-grilagem-nos-cartorios-em-12-anos/

14) EIA ECOSSISTEMAS, p. 15

15) EIA ECOSSISTEMAS, p. 21

16) EIA ECOSSISTEMAS, p.22

17) EIA ECOSSISTEMAS, p.24

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quarta-feira, 31 de maio de 2023

Ferrogrão: Com estudo de impacto ambiental fake, estrada de ferro que corta Amazônia vai a julgamento no STF

Traçado da Ferrogrão - Bacia do Tapajós à esquerda e Bacia do Xingu à direita
Fonte da imagem: EIA/RIMA versão 2020

Primeira Parte

Por Telma Monteiro

O Supremo Tribunal Federal (STF) deverá julgar, no próximo dia 31, a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 6553 que confirmará ou não a legitimidade constitucional da Ferrogrão ou EF-170. A ação foi apresentada pelo PSOL, em 2021, e se fundamenta na Constituição Federal. A Lei nº 13.452/2017 aprovada pelo Congresso e  decorrente de Medida Provisória (MP) editada no governo Dilma Rousseff, seria inconstitucional, pois não poderia desafetar parte do Parque Nacional do Jamanxim (PARNA Jamanxim), Unidade de Conservação Federal de restrição integral, para passar a ferrovia.

Três, dos principais ministros do governo federal, ministro do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC), Geraldo Alckmin, ministro da Agricultura e Pecuária, Carlos Fávaro e o ministro da Infraestrutura, Renan Filho, entendem que a Ferrogrão seria indispensável para escoar para o Arco Norte, as commodities agrícolas de Mato Grosso.

O que é a Ferrogrão ou EF-170[1]

O trajeto previsto para a Ferrogrão é de 1.188 km e segue paralelo - separado em alguns trechos por apenas 40m - com a polêmica BR-163, ou rodovia Cuiabá–Santarém, que foi construída durante os anos 1970. A Ferrogrão deverá atravessar um mosaico de Unidades de Conservação e Terras Indígenas, podendo agravar e tornar ainda mais irreversíveis os impactos promovidos pela rodovia BR-163. Além de impactos ambientais e sociais, a EF-170 vai interceptar 17 municípios, dos quais 12 estão no estado do Mato Grosso e os outros cinco no estado do Pará.

O projeto da ferrovia data de 2012, lançado pelo governo federal – segundo governo Lula - dentro do Programa de Investimento em Logística – PIL para complementar a integração logística do norte do Mato Grosso. Já em 2012, o lobby do agronegócio se intensificou no sentido de pressionar o governo para que a ferrovia pudesse ser rapidamente aprovada. Em 2014, o Ministério da Infraestrutura publicou um edital para a elaboração dos Estudos de Viabilidade da ferrovia, e a Estação da Luz Participações – EDLP, apoiada pelas tradings ADM, Amaggi, Bunge, Cargill e Louis Dreyfus, se propôs a fazer o relatório de viabilidade técnica, entregue em 2016.

Inicialmente, a Ferrogrão seria licitada por um período de 69 anos. Digo isso porque, no governo de Jair Bolsonaro, a regra mudou para um regime de concessão em que os investidores ou empresas poderão obter uma autorização simplificada, conforme a Medida Provisória – MP 1065/21, um novo marco legal do transporte ferroviário.  Permite a construção de novas ferrovias por meio de uma autorização simplificada, sem necessidade de licitação. O custo atualizado da construção da Ferrogrão já passou dos R$ 28 bilhões. A ideia do governo federal foi um retrocesso histórico comparável com a época da ditadura militar, que tinha o objetivo de “ocupar” o vazio demográfico na Amazônia.

O lema “Integrar para não Entregar” está muito presente no projeto da Ferrogrão. É esse o objetivo: escoar a produção de grãos do Mato Grosso e interligar com o escoamento da produção no Arco Norte, outra estratégia de integração com rodovias, ferrovia, portos, estações de transbordo para unir Amazonas, Pará, Amapá e Maranhão. Mais uma vez, a Amazônia, tão explorada desde o descobrimento e ocupada no período da ditadura militar, torna-se fundamental para os planos de destruição impulsionados pelo governo federal e seus aliados do agronegócio predatório. Sim, porque não há plano B, o de não criar impactos na maior floresta do mundo e nas terras indígenas.

A grande lacuna nos estudos ambientais: uma análise genocida

Impossível iniciar uma análise dos estudos ambientais da Ferrogrão ou EF-170 sem mostrar, dentre suas inúmeras falhas, a que interpreto como uma das mais criminosas do EIA/RIMA. No capítulo Meio Socioeconômico - 5.3.5.4 Comunidades Tradicionais, atualizado em 2020, consta que foi encontrada apenas uma comunidade tradicional no traçado de 1.188 km entre Sinop, no estado de Mato Grosso, e o porto de Miritituba no estado do Pará, às margens do rio Tapajós. Há uma tentativa deliberada de ignorar, nesse estudo, todos os povos indígenas e comunidades tradicionais na área de estudo. É um genocídio documental.

P.274 “Das cinco consultas realizadas, três instituições se manifestaram. Ao analisá-las, infere-se que não há possiblidade de confirmar a existência de comunidade tradicional na Área de Estudo”

“(...) o esforço realizado resultou na identificação de uma comunidade que potencialmente se encaixe na categoria em questão.”

“A Comunidade Aruri, no município de Trairão/PA, foi apontada por moradores da zona rural como tipicamente de pescadores, categoria confirmada pela liderança comunitária. O presidente da Colônia de Pescadores Z-74 apontou tal comunidade como tradicional, pela centralidade da pesca artesanal nas dinâmicas econômica e cultural dos moradores.”

Esse é um capítulo muito sensível e que é tratado com desrespeito absoluto. No texto do EIA consta não haver possibilidade de confirmação de existência de comunidades tradicionais na área de estudo da Ferrogrão. Isso torna o documento inconsistente e com poder que anularia qualquer pretensão de licenciamento da ferrovia pelo órgão ambiental. Sem contar, como agravante, a falta de respeito para com os 48 povos indígenas ignorados ao longo da faixa de 1.188 km, conforme mencionado na Representação do MPF ao MP do TCU, no âmbito do Inquérito Civil N. 1.23.008.000678/2017-19.[2]

Esse entendimento produzido no EIA/RIMA, sobre a inexistência de povos indígenas e comunidades tradicionais ao longo da área de estudo da Ferrogrão, desqualifica o estudo. A invisibilidade imposta às comunidades tradicionais na Área de Estudo deixa patente o desrespeito aos povos da Amazônia. O texto expõe um “esforço” na identificação de uma única comunidade tradicional, a Comunidade Aruri, de pescadores, no município de Trairão, no Pará, considerada não “oficial”, pois “não foi localizado processo formal de reconhecimento da condição de comunidade tradicional ou de elaboração de Protocolo de Consulta (conforme a OIT 169) aplicável a processos de licenciamento ambiental.”

No entanto, para os moradores, essa comunidade é típica de pescadores artesanais na zona rural e confirmada pela liderança da comunidade.  O EIA, no entanto, ignora essa identidade. Reproduzo, abaixo, parte desse trecho deplorável nos estudos ambientais, que por si só invalidaria todo o resto.

“De acordo com a liderança comunitária entrevistada, representante da Associação de Moradores, a comunidade Aruri surgiu em função das atividades de garimpo, aproximadamente na década de 1980, no contexto de ocupação do município de Trairão. Está localizada a uma distância estimada de 345 metros do traçado previsto para o empreendimento, às margens da rodovia BR-163 e do rio Aruri, como ilustra a Figura 868 e a Figura 869. Possui aproximadamente 40 (quarenta) famílias, cujo abastecimento de água é feito por poço ou cacimba. A destinação do esgotamento sanitário é fossa, vala ou o próprio rio, e o lixo ali produzido é queimado ou enterrado, prática comum em localidades rurais, especialmente pela inexistência de serviço regular de coleta de resíduos sólidos. A Figura 870 retrata o padrão residencial das casas instaladas às margens da rodovia BR-163, enquanto a Figura 871 traz ponto de venda de pescado e restaurante.”

“(...) a extração de cassiterita muito intensa na região.”[3]

“Os moradores praticam a pesca nos rios Jamanxim e Aruri, nos locais permitidos pela legislação do Parque Nacional do Jamanxim.”

O acesso à pesca de subsistência na comunidade Aruri é permitido apenas em obediência à legislação do Parque Nacional do Jamanxim. Essa UC federal protegida integralmente para que comunidades tradicionais possam sobreviver e cuidar da riqueza que representa, no entanto, pode ser impactada pela construção e funcionamento da ferrovia.

PASSIVOS AMBIENTAIS

Em 2017 a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) realizou uma Audiência Pública (nº14/2017) para apresentar a Ferrogrão (EF 170) e deixou de apontar os passivos ambientais ao longo do traçado da ferrovia. Não consideraram a importância desses passivos que, se somados aos impactos sinérgicos e cumulativos decorrentes da construção, dariam a verdadeira dimensão do estrago, complicando a obtenção das licenças, além de encobrir a realidade sobre os custos implicados.[4]

No projeto da ferrovia de 1.188 km, que atravessa a Amazônia de sul a norte, além de escamotearem os passivos ambientais, ignoraram os riscos inerentes à construção, haja vista a existência dos processos de degradação provocados pelo uso predatório do solo, o desmatamento associado para expansão da agropecuária e a ocupação fundiária. Deixou-se, inclusive, de mencionar os impactos já criados nas Áreas de Preservação Permanente (APPs) pela mineração e garimpo, ignorando que um obra como essa tem o potencial de amplificar a destruição da região. E, acrescente-se, ainda, as agressões à fauna, o desaparecimento das espécies e alterações na paisagem que impactarão o bioma amazônico e o cerrado.

A já ocupada região, fragilizada e deteriorada com o avanço intensivo da agropecuária, poderá sofrer ainda mais perdas do ecossistema, mais impactos que ainda não foram estudados no contexto do processo de licenciamento ambiental. Construir a ferrovia EF-170 levará ao aumento da exploração fundiária ao longo do traçado que vai dividir a Amazônia em duas porções, usando a destruição de terras indígenas, de comunidades tradicionais, de unidades de conservação para desconectá-las definitivamente: a leste, região que abriga a bacia do rio Xingu e a oeste que abriga a sub bacia do Jamanxim. 

Não resta dúvidas de que toda a intervenção nessa macrorregião, já tão fragilizada pelas ocupações ilegais provocada pela rodovia BR 163 (construída nos anos 1970), poderá criar um novo processo facilitador das atividades de mineração e garimpo, e consequente aumento do desmatamento. A fase de instalação da Ferrogrão já pressupõe impactos negativos na ordem de mais de 90%, segundo os dados do EIA/RIMA. A quem interessa?

Em tempos em que se preveem o agravamento e aceleração das mudanças climáticas, essas perturbações ambientais em uma localização tão complexa e interligada pela biodiversidade do mosaico de unidades de conservação poderá significar interferência no estoque de carbono e acelerar a extinção de espécies.

A malha complexa de cursos d’água, superficiais e subterrâneos, será contaminada, e determinará ondas de destruição dinâmicas que afetarão povos indígenas, ribeirinhos, culturas e o esforço empreendido pelo Brasil e pela comunidade internacional para reduzir e pôr fim ao aumento do desmatamento da Amazônia. Some-se a isso, a deterioração do solo que colocará em risco as unidades de conservação e os serviços ambientais. Continua na Parte 2.



[3] MEIO SOCIOAMBIENTAL – Comunidades tradicionais – p.276

[4] VOLUME I – ESTUDO DE IMPACTO AMBIENTAL (EIA)

Tomo V - Passivos Ambientais

Ferrogrão: o que tem por trás dos estudos atualizados pelo Ministério dos Transportes e Infra S/A?

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