sexta-feira, 29 de novembro de 2024

Ferrogrão: o que tem por trás dos estudos atualizados pelo Ministério dos Transportes e Infra S/A?


Ferrogrão: o que tem por trás dos estudos atualizados pelo Ministério dos Transportes e Infra S/A?

 Telma Monteiro, para o Correio da Cidadania

 O que seria um projeto tecnicamente adequado, economicamente viável e ambientalmente equilibrado para o MT e a Infra S.A.? Certamente essa “metodologia” não está tratando disso na atualização dos estudos da Ferrogrão em que minimizam as chamadas subjetividades e maximizam os fatores só importantes para o projeto econômico.

 Introdução para atualizar nossa memória sobre o projeto Ferrogrão

O projeto da Ferrogrão envolve a construção de uma ferrovia com aproximadamente 933 km para ligar Sinop (MT) ao porto de Miritituba (PA), para escoar, segundo a Confederação Nacional de Agricultura (CNA), até 52 milhões de toneladas de commodities agrícolas por ano. O traçado previsto no projeto é paralelo à BR-163 em que parte está dentro do Parque Nacional do Jamanxim, que é UC Federal. Além disso, o Tribunal de Contas da União (TCU) se manifestou, atendendo uma ação do Ministério Público, sobre a falta de consulta aos povos indígenas.

O Supremo Tribunal Federal julgou, em maio de 2023, uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 6553 do PSOL que questiona a constitucionalidade da MP de desafetação do Parque Nacional do Jamanxim assinada pela então presidente Dilma Roussef e, entre outras coisas, a falta de consulta aos povos indígenas. A Medida Provisória (MP) 758/2016 de Dilma excluiu (desafetação) cerca de 862 hectares lineares do parque, o que é inconstitucional. Essa desafetação foi a solução usada pelo governo de Dilma para que fosse possível viabilizar o traçado da EF-170, Ferrogrão

Em maio de 2023, o ministro Alexandre de Moraes, do STF, julgou que o processo deveria ir para o Centro de Soluções Alternativas de Litígios (Cesal)[1], no STF, para se chegar a um acordo. Ele concedeu um prazo de seis meses para uma solução. O Cesal busca a mediação e conciliação de litígios de natureza variada; oferece serviços para promover acordos entre as partes envolvidas, evitando que os casos precisem ser decididos judicialmente; envolve métodos alternativos de resolução de disputas, como mediação e arbitragem.

A ação sobre a Ferrogrão no STF tramitou no Cesal e voltou ao ministro Alexandre de Moraes que determinou, então, a suspensão da tramitação da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 6553 por seis meses, para que fossem concluídos os estudos e as atualizações sugeridas no procedimento de conciliação. Essa decisão foi tomada para permitir a conclusão dos diálogos e propostas acordados pelas partes interessadas.

 O Cesal, então, encaminhou várias sugestões[2] ao ministro Alexandre de Moraes que, teoricamente, deveriam tirar o projeto do juízo. Entre elas, destacam-se:

·       Compensações Ambientais: propostas para medidas de compensação ambiental devido à alteração dos limites do Parque Nacional do Jamanxim;

·       Oitiva das Comunidades Indígenas: sugestão de realizar uma oitiva qualificada das comunidades indígenas afetadas pelo projeto.

·       Estudos Técnicos: continuar com os estudos e processos administrativos relacionados à EF-170, Ferrogrão, incluindo a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), o Ministério da Infraestrutura e o Tribunal de Contas da União (TCU).

Essas “sugestões” foram um esforço no sentido de encontrar uma solução consensual para dar andamento ao processo da Ferrogrão, considerando os impactos ambientais e sociais decorrentes de sua construção. Mas, encontrar uma solução que viabilizasse a Ferrogrão é uma tarefa hercúlea ou impossível, dados os problemas já apontados pela sociedade civil, pelo MP, pelo Ibama que analisou o EIA e pelo TCU, ao longo de mais de uma década. 

O Cesal recomendou, nas sugestões encaminhadas ao ministro, a realização de uma “oitiva qualificada das comunidades indígenas” que, traduzido, se trata de um processo de consulta completo para cada povo indígena levando em consideração seu protocolo de consulta. Recomendação dispensável, já que essa consulta é obrigatória no licenciamento de obras que afetem terras indígenas e que deve ser livre, prévia e informada. É imprescindível regras claras para ouvir e considerar as opiniões, preocupações e sugestões dos povos indígenas.

·       Consulta Prévia: deve ocorrer antes da elaboração de qualquer projeto que possa vir a criar impactos para as comunidades indígenas, conforme estabelece a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é signatária.

·       Inclusão: essencial que líderes tradicionais e membros da comunidade estejam presentes para garantir o pleno conhecimento de como serão afetados;

·       Informação clara e acessível: as informações sobre o projeto, antes da tomada de decisão, devem ser apresentadas de forma clara e compreensível, traduzidas para a língua da comunidade, considerando suas culturas;

·       Ambiente: a consulta deve acontecer dentro das próprias comunidades indígenas onde toda a comunidade pode participar;

·       Documentação: todo o processo de oitiva deverá ser documentado para assegurar que as dúvidas e sugestões das comunidades indígenas sejam consideradas e incorporadas nas decisões finais.

Em outubro de 2023 o Ministério dos Transportes criou o Grupo de Trabalho (GT) Ferrogrão com o objetivo de discutir e acompanhar os processos e atualização dos estudos para dar continuidade ao projeto. O GT seria voltado para a questão socioambiental e econômica, para tentar obter um projeto aceitável para todas as partes interessadas, incluindo povos indígenas e as organizações da sociedade civil, MP e comunidades tradicionais. O grupo teria como objetivo construir um diálogo entre o governo, a sociedade civil e as comunidades afetadas pelo empreendimento.

 Em 18 de julho de 2024, o GT Ferrogrão do Ministério dos Transportes enviou as atualizações dos estudos para a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT). Esses estudos finais abordaram, pretensamente, sem o aval da sociedade civil, tanto a concessão quanto as questões ambientais relacionadas ao projeto.

 O Grupo de Trabalho (GT) Ferrogrão do Ministério dos Transportes (MT) acabou, então, sendo encerrado em julho de 2024, quando os representantes dos indígenas e da sociedade civil descobriram que o MT a Infra S.A. enviaram para a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) a atualização já finalizada dos estudos da Ferrogrão sem a sua participação. Os indígenas e a sociedade civil emitiram uma nota sobre a sua retirada do GT e os desafios significativos da viabilidade social, ambiental e econômica do projeto, além das tensões que se intensificaram com a falta de consenso.

  Primeiras considerações sobre a versão atualizada (2024) dos estudos da Ferrogrão

A Infra S.A.[3] produziu uma Nota Técnica que analisa de forma sintética e evasiva a nova versão dos estudos da Ferrogrão conduzida pela EDLP[4].

Chama especial atenção a nova versão do Estudo de Viabilidade Técnica Econômica e Ambiental (EVTEA) que tenta justificar o injustificável: o mesmo traçado da EF-170, Ferrogrão (o EIA já havia sido recusado pelo Ibama[5]) e sua interferência no Parque Nacional do Jamanxim. Esse ponto recebeu atenção especial nos estudos da Infra S.A. e é exatamente o que deu origem à ADI 6553 do PSOL, sobre a interferência inconstitucional na UC federal. No documento produzido, em julho de 2024,  foi priorizada o que o estudo chama de “uma análise completa sobre as terras indígenas, unidades de conservação, áreas de preservação permanente áreas de preservação permanente, áreas de conflito fundiário, uso e ocupação do solo[6]”.

Para tentar o impossível - “consertar” o traçado inicial da Ferrogrão - os novos estudos incluíram o projeto na mesma área da faixa de domínio da BR-163, o que na verdade não muda em nada a situação apontada na ação de inconstitucionalidade do PSOL. A interferência da ferrovia na UC federal no mesmo traçado, passando também dentro do Parque Nacional do Jamanxim, se somaria aos  impactos ainda não absorvidos produzidos pela rodovia e que já estão lá há muito tempo. Não dá para diagnosticar a extensão de novos impactos considerando apenas que eles “teoricamente” aconteceram durante e depois da construção da rodovia BR-163. Não é possível incluir os impactos sinérgicos e cumulativos de um empreendimento novo, dessa envergadura, aos já assimilados por outro, anterior, cujo traçado curiosamente seria o mesmo.

O corredor espacial apontado nos novos estudos atualizados é um “blá blá blá” semântico do projeto de engenharia pois fala em “avaliações comparativas objetivas”, separando os estudos de corredor espacial da nova seleção de diretriz de traçado. E, ainda, remete a avaliações adicionais para manter as melhores condições geométricas, pasme, para obter menores custos de implantação e operação, priorizando a questão técnica e viabilidade econômica do projeto e, pior, considera como subjetividades as questões prioritárias dos impactos ambientais e sociais.[7] O que seria um projeto tecnicamente adequado, economicamente viável e ambientalmente equilibrado para o MT e a Infra S.A.? Certamente essa “metodologia” não está tratando disso na atualização dos estudos da Ferrogrão em que minimizam as chamadas subjetividades e maximizam os fatores só importantes para o projeto econômico.

Estranho é, também, a afirmação do fato de que os 49 km do traçado da Ferrogrão, dentro da UC, serão considerados parte da faixa de domínio da BR-163, como se essa simplificação tivesse o poder de evitar novos impactos ambientais ao Parque Nacional do Jamanxim[8]. Foram, ainda, introduzidas mais alterações na atualização do projeto da Ferrogrão como o levantamento dos passivos ambientais da BR -163, que claramente tem o objetivo de afastar a possibilidade de responsabilização da futura concessionária da ferrovia. Essa manobra, claramente, impede que sejam dimensionados os impactos sinérgicos e cumulativos dos dois empreendimentos. (Continua)

 


[1] O Centro de Soluções Alternativas de Litígios (Cesal), do Supremo Tribunal Federal (STF) foi criado pela Resolução 790/2022, assinada pela ministra Rosa Weber.

https://www.conjur.com.br/2023-set-17/leandro-cabral-luz-fim-tunel-litigio-judicial/?form=MG0AV3

[3] A INFRA S.A. é uma empresa pública federal do Brasil, vinculada ao Ministério dos Transportes. Foi criada em 2022 pela fusão da VALEC Engenharia, Construções e Ferrovias S.A. e da Empresa de Planejamento e Logística S.A. (EPL)1. A INFRA S.A. tem como foco principal a prestação de serviços de planejamento, estruturação de projetos, engenharia e inovação para o setor de transportes

[4] Nota Técnica Conjunta nº 2/2024/SUFER-INFRASA/DIPLAN-INFRASA/DIREX-INFRASA/CONSAD- INFRASA/AG-INFRASA

[5] O Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) não aceitou o Estudo de Impacto Ambiental (EIA) do projeto Ferrogrão em novembro de 2020. A decisão foi baseada na falta de consideração adequada dos impactos socioambientais e na ausência de um processo de consulta prévia, livre e informada com as comunidades indígenas e outras partes interessadas. https://site-antigo.socioambiental.org/pt-br/noticias-socioambientais/estudo-revela-riscos-socioambientais-nao-dimensionados-da-ferrograo?form=MG0AV3

[6] Item 27 da Nota Técnica

[7] Ítem 28 da Nota Técnica

[8] Ítem 30 da Nota Técnica


segunda-feira, 25 de novembro de 2024

A “colonização dourada” idealizada pela China




A “colonização dourada” idealizada pela China

 

Telma Monteiro, para o Correio da Cidadania

 

Houve ainda quem mencionasse que esses acordos ajudariam o Brasil a diversificar suas atuais fontes de tecnologias com origem em outros países e reduziriam sua dependência. Me parece mais uma troca de “dependências”, só que no caso da China seria muito mais abrangente e sem retorno. A China não transfere tecnologia em troca de nada. Geralmente Xi Jinping condiciona a investimentos disfarçados em parcerias comerciais. Empresas brasileiras teriam que participar de joint ventures, assimilar e depender da transferência de tecnologia como parte do acordo.

 

Mais de 100 países já aderiram à Nova Rota da Seda ou Iniciativa do Cinturão e Rota (BRI)[1]. Dos 100 países, 22 são da América Latina. Durante a visita de Lula à China, em abril de 2023, já haviam sido assinados vários acordos para reforçar a cooperação econômica entre os dois países. A China tem pressionado o Brasil para que se junte formalmente à BRI o que, segundo ela, poderia gerar investimentos significativos em infraestrutura, como portos, ferrovias e rodovias, além de projetos de energia “verde “e saúde.

Durante o encontro entre Lula e Xi Jinping, neste novembro de 2024, em Brasília, foram assinados 37 acordos de “cooperação” abrangendo diversas áreas estratégicas, sem, no entanto, formalizar a entrada do Brasil no projeto chinês da Rota da Seda. Entre os acordos assinados estão (1) agronegócio: que prevê a abertura do mercado para alguns produtos brasileiros como sorgo, gergelim e uva fresca; (2) tecnologia: de inteligência artificial e economia digital; (3) infraestrutura: projetos de infraestrutura e transição energética (?); (4) energia: opção por energia nuclear para uma transição energética de matriz limpa (?); (5) saúde e educação: intercâmbio e cooperação (?); (6) turismo e cultura: promoção de intercâmbio (?). As interrogações no texto acima se referem às propostas de cooperação que mais parecem uma forma de sossegar o mercado e o governo dividido, sobre entrar ou não no projeto de “colonização dourada” que a China propõe e dissimula as verdadeiras intenções nas entrelinhas do acordo. A verdade é que esses itens podem representar uma preparação do ambiente político/ econômico sobre uma possível adesão formal do Brasil à Rota da Seda. O gato subiu no telhado? Biden criticou a possível adesão, se sentindo traído, mas Trump vem aí e não dá a mínima para o Brasil.

Os especialistas enfatizam que esses acordos já firmados reforçam a parceria estratégica entre Brasil e China, promovendo o desenvolvimento econômico e a inovação tecnológica em ambos os países. Mas qual seria a real necessidade do Brasil em promover acordos de renovação ou inovação tecnológica com a China? Muitos responderão que afinal a China é o maior parceiro comercial do Brasil e que uma cooperação em tecnologia fortaleceria esse laço. Será? Afirmar que a China avançou em tecnologia nuclear enquadrada como “renovável” é no mínimo um dissenso, principalmente se considerarmos os fantasmas de Angra.

Houve ainda quem mencionasse que esses acordos ajudariam o Brasil a diversificar suas atuais fontes de tecnologias com origem em outros países e reduziriam sua dependência. Me parece mais uma troca de “dependências”, só que no caso da China seria muito mais abrangente e sem retorno. A China não transfere tecnologia em troca de nada. Geralmente Xi Jinping condiciona a investimentos disfarçados em parcerias comerciais. Empresas brasileiras teriam que participar de joint venture, assimilar e depender da transferência de tecnologia como parte do acordo.

Dentro da Rota da Seda, os países que aderiram já começam a questionar essas negociações e temer a vantagem competitiva da China. Os principais impasses poderiam estar na colaboração tecnológica que pode levar a inovações para beneficiar setores estratégicos como agricultura, saúde e manufatura.

Se o Brasil vier a aderir à Iniciativa do Cinturão e Rota (BRI), é preciso questionar muitos fatores que criam um risco potencial à sua soberania: (1) a expansão econômica facilitaria e favoreceria principalmente a China a ampliar o acesso aos mercados de exportação com países da Ásia, Europa, África e América Latina, usando o Brasil como hub e trampolim.  A China precisa alicerçar seu crescimento econômico a qualquer custo; (2) ampliação da infraestrutura global em que a China aplica sua expertise na infraestrutura calcada em ferrovias, portos, estradas e telecomunicações. Um objetivo bastante estratégico da China para melhorar a conectividade global e, mais uma vez, promover o que eu reputo ser a principal ambição, pois fortaleceria sua influência econômica e política. É preciso mencionar, ainda, os custos ambientais e sociais para países como o Brasil que têm riquezas minerais e terras para serem exploradas em regiões e biomas importantes para manter o equilíbrio do clima do planeta; (3) segurança energética para a China seria uma estratégia muito forte, considerando o fato dela poder contar com uma grande diversidade de fontes de energia no Brasil para garantir sua hegemonia aliada à segurança para operar rotas de transporte para a logística de distribuição; (4) exploração da cooperação focada em alta tecnologia, diretamente ligada à 5G, inteligência artificial, cidades inteligentes, transformariam a China em líder tecnológica, mesmo usando, inclusive, avanços de outros parceiros já adiantados e criando dependência tecnológica; (5) o aumento da influência geopolítica a partir dos investimentos em outros países em desenvolvimento, minando sua soberania, criaria a possibilidade de consolidar a China como potência global; (6) dívidas – deve-se levar em conta os recursos financeiros a serem investidos pela China, no Brasil. Quanto seria, na verdade, empréstimo para viabilizar a infraestrutura e energia do Brasil para o escoamento de commodities extraídas dos biomas brasileiros que mais beneficiariam a China?

Então, nesse panorama de neocolonialismo, o Brasil poderia ser protagonista com maiores vantagens? A resposta é não. Pois, apesar de uma possibilidade de modernização na infraestrutura, busca quase que fanática do presidente Lula – ferrovias, aeroportos, portos, rotas de integração incluindo hidrovias – haveria um grande risco de, ao modernizar alguns setores estratégicos como energia, telecomunicações ou manufatura, de perder sua autonomia. Os investimentos ou empréstimos chineses atrairiam novos mercados para os produtos brasileiros ou aumentariam as exportações de commodities para e pelos chineses? Outra questão seria se, com a participação do Brasil na Iniciativa do Cinturão e Rota (BRI), resultaria realmente em acesso a novos mercados. 

Do ponto de vista tecnológico, a parceria seria capaz de transferir tecnologia e inovação, para beneficiar a agricultura, indústria e serviços? É uma incógnita e talvez as considerações do governo americano sobre essa parceria de Brasil e China e a perda da soberania brasileira, possam acrescentar algumas respostas. No entanto, há correntes dentro do governo brasileiro que consideram essa parceria uma forma de fortalecimento das relações bilaterais tanto diplomáticas como comerciais entre os dois países. Uma coisa fica bastante clara: o “trilhardário” caminhão de dinheiro chinês para bancar a iniciativa[2] atrai o governo brasileiro.

  


[1] Iniciativa do Cinturão e Rota (Belt and Road Initiative - BRI)

[2]  Nova Rota da Seda: o que Brasil ganha ou perde se aderir a plano trilionário chinês    https://g1.globo.com/mundo/noticia/2023/04/12/nova-rota-da-seda.ghtml


quarta-feira, 20 de novembro de 2024

O “desenvolvimento sustentável” no acordo de energia nuclear entre Brasil e China

O “desenvolvimento sustentável” no acordo de energia nuclear entre Brasil e China


Imagem: Portal Lubes
Telma Monteiro, para o Correio da Cidadania

 O presidente Lula e Xi Jinping assinaram um acordo (20/11) no qual um dos itens propõe a construção de novas usinas nucleares com tecnologia considerada, no documento, avançada e segura, além de ser um marco importante na cooperação entre Brasil e China. O acordo promete fortalecer a capacidade produtiva e a segurança energética dos dois países, promovendo o desenvolvimento de tecnologias nucleares de ponta.

Não esqueçamos que Angra 3 já está caindo de velha, antes mesmo de ser terminada. A construção da usina, localizada no estado do Rio de Janeiro, entrou na sua fase final com a montagem dos componentes principais e instalação do reator nuclear. Angra 3 está em obras desde 30 de maio de 2010 e enfrentou vários atrasos ao longo dos anos.

As interrupções aconteceram em 2015 devido a uma revisão do financiamento e investigações relacionadas à Operação Lava Jato, mas as obras foram retomadas em 2022. Questões contratuais e a necessidade de novos investimentos contribuíram para outros atrasos. A estimativa atual é que a usina venha a operar no final de 2028 ou até 2030. O custo inicial de Angra 3 era de R$ 10 bilhões, mas hoje está em torno de R$ 20,3 bilhões.

No meio desse imbróglio com a construção de uma sucata que tem custado o dobro do previsto, e nem vou entrar nesse mérito, o governo brasileiro assina esse acordo com a China, para a construção de novas usinas nucleares no Brasil. A promessa é de utilizar tecnologia avançada e “segura” fornecida pela China.

Ao retornar no tempo, com a intenção de construir novas plantas de usinas nucleares, o governo brasileiro ignora os riscos inerentes. Entre os pontos acordados está a capacitação e treinamento de brasileiros para assimilar esse conhecimento “atualizado” atribuído aos chineses.

Mesmo com uma aversão da sociedade à tecnologia de usinas nucleares, o acordo tenta dourar a pílula com a proposta de implementar novas medidas que incluem “sustentabilidade ambiental” e segurança. No bojo do texto entre China e Brasil foram jogadas pílulas de impropriedades como o de obter incremento na capacidade de gerar mais energia no Brasil, além de mencionar uma diversificação na matriz energética.

Mas a cereja do bolo ficou, mesmo, com o que chamaram de potencial para a redução das emissões dos gases de efeito estufa, adotando a energia nuclear com o carimbo de “fonte de energia limpa”. Mas essa parceria sai com chavões desenvolvimentistas que conhecemos bem, o de impulsionar o desenvolvimento econômico com inovação tecnológica e desenvolvimento sustentável entre os dois países.

O Brasil tem que considerar alguns desafios na implementação desse acordo, como a segurança e o descarte dos resíduos perigosos. A construção e manutenção de usinas nucleares requerem orçamentos altos e uma complexidade tecnológica. Considerando a matriz energética brasileira, com o crescimento de geração pelas renováveis como a eólica e solar, e as deploráveis hidrelétricas (gerando energia suja), construídas às custas da biodiversidade, não haveria a necessidade da retomada da energia nuclear.

No entanto esse acordo entre Brasil e China, para construção de novas plantas nucleares, tenta dar um tom de tecnologia moderna e avanço científico para o país. Aceitar esse retrocesso é voltar ao passado com mais preocupações com questões ambientais e de segurança.

A decisão de expandir o uso de energia nuclear envolveria ponderar esses fatores e considerar as necessidades energéticas futuras do Brasil, bem como as preocupações ambientais e de segurança futura dos descartes dos resíduos.


quarta-feira, 27 de março de 2024

Ferrogrão – soja no coração da Amazônia

Estudo Preliminar 3 - Ferrogrão e a Soja na Amazônia

 


                                                     Imagem: Brasil de Fato

 

 

Ferrogrão – soja no coração da Amazônia

 

Telma Monteiro [1]

Tarcísio Feitosa da Silva [2]

 

INTRODUÇÃO

Este estudo preliminar tem a intenção de despertar uma discussão sobre a possibilidade de que a intenção de construir a EF-170, a Ferrogrão, para ligar o Norte do Mato Grosso ao Arco Norte, usando a hidrovia Tapajós – Amazonas para saída pelo Atlântico, é uma opção descabida, já reafirmada e comprovada e assimilada pelos povos indígenas, movimentos sociais, organizações da sociedade civil, cientistas, professores e economistas. Diante das questões atuais de ocupação e grilagem de terras públicas[1] com um verdadeiro caos fundiário na Amazônia Legal, construir outro vetor para ocupação do bioma mais importante do mundo é uma declaração do fim da floresta em pé.

Ficou provado que a Ferrogrão não se sustenta[2]. Estudos econômicos e financeiros mostraram que os números apresentados pela Agência Nacional de Transporte Terrestre (ANTT) não correspondem à realidade. Todos os indicadores demostram que, se o projeto sair do papel provocará fragilidade social, violência urbana, desassistência, aumento do desmatamento, falta de saneamento, contaminação dos povos indígenas, das populações vulneráveis e dos rios pelo mercúrio usado no garimpo, já descontrolado. Basta entender o que está acontecendo, por exemplo, em Terras Yanomami e Munduruku, que já têm grande parte da população contaminada pelo mercúrio. As mudanças climáticas estão alterando o regime de chuvas na Amazônia e expondo uma realidade que é mais que um simples alerta. Algo está mudando rapidamente. Os cientistas não brincam com a ciência.

Até o escoamento das commodities agrícolas e minerais que usa o rio Tapajós e o rio Amazonas para abastecer grandes navios graneleiros está ameaçado pelas secas prolongadas. A calha do rio Tapajós, por exemplo, não comportaria o aumento das cargas se a Ferrogrão saísse do papel. Mas, um dado estarrecedor é o que está acontecendo no Canal do Panamá. As autoridades do Canal do Panamá reduziram drasticamente o tráfego dos navios que já se amontoam em longas filas nos dois lados do canal. Não faltam matérias[3] que alertam para a incapacidade atual do canal em repor a água potável, já escassa, para abastecer as comportas.

O Brasil tem um destaque internacional, como um dos maiores exportadores de commodities agrícolas do mundo, com tecnologias de ponta, irrigação, solo favorável e biotecnologia. Mas pecou pelo não planejamento da logística de longo prazo. Apostou na exploração e ataque da Amazônia em detrimento da floresta e dos povos que a habitam.  Não há dúvidas que a demanda mundial é crescente, mas o gargalo logístico deverá inviabilizar essa posição brasileira. As grandes tradings internacionais, idealizadoras da Ferrogrão, pensada em 2014, não imaginavam que a ideia de levar os grãos do norte do Mato Grosso para escoamento pelo Arco Norte, poderia estar com seus dias contados. Graças as lutas dos movimentos sociais, povos indígenas e do Supremo Tribunal Federal esse “projeto de morte” morreu, por enquanto.

No entanto, a possibilidade de termos sido enganados com o objetivo de construir a Ferrogrão é muito grande. Erramos em não pensar que o projeto da ferrovia não pretendia ligar Sinop no MT a Miritituba no Pará. Na verdade, abaixo vamos demonstrar como a exploração agrícola e mineral em áreas ainda de floresta em pé, ao longo do eixo da BR-163, na bacia hidrográfica do Tapajós e no Interflúvio do Xingu, pode estar nos planos estratégicos dos sojicultores e das grandes mineradoras. O movimento não seria o de apenas levar as commodities agrícolas para o Arco Norte, mas explorar o potencial de 436.691 km² de terras ainda florestadas em grande parte, 35% do Estado do Pará, ou as chamadas áreas de Consolidação e Expansão

O governo brasileiro desatento ou apenas escamoteando as notícias internacionais ignora o aumento dos custos de frete praticados hoje no Canal do Panamá, que já atingiu patamares inimagináveis. Desde 2020 a crise se agrava. Mais adiante demonstraremos como a Ferrogrão não se encaixa e nunca se encaixou nessa alternativa logística que acabaria como a Madeira – Mamoré e destruiria UCs, terras indígenas. Os governos de outros países já se preocupam com a possível inviabilidade atual da ligação do Atlântico ao Pacífico pela hidrovia do Panamá, inaugurada em 1914.

Infelizmente, fatores variados começam a acender um sinal vermelho nas grandes potências para o risco de desabastecimento global e consequente aumento dos preços de alimentos, commodities minerais. O abastecimento da costa leste dos EUA já sente os efeitos negativos do aumento dos fretes; o governo do Mexico está desenvolvendo alternativas para ligar o Atlântico ao Pacífico, por terra, com malha ferroviária e acelerar a conclusão do Corredor Transoceânico.  Alguns países já começaram a discutir alternativas para contornar o problema antes que o mundo entre em colapso.

“A soja é a principal commodity produzida no Brasil e tem imensa importância na economia do país. O Brasil é o maior exportador mundial de soja, respondendo por metade do consumo global desse grão”.

Por que construir a Ferrogrão?

a)     Considerando que o escoamento de grãos para a Ásia, em especial de soja e carne para a China (maior parceiro comercial do Brasil), necessariamente usaria o Canal do Panamá para acessar o oceana Pacífico;

b)     Considerando que a saída pelo Panamá está comprometida, conforme amplamente noticiado[4] e [5];

c)       Considerando que o objetivo de construir a Ferrogrão seria levar a soja do norte do Mato Grosso para o porto de Miritituba, no rio Tapajós (informações no Caderno ou Estudo de Demanda da ANTT);

“Optou-se por Sinop como o centroide da zona de origem, pois, de acordo com o Caderno de Demanda (ANTT, 2019a), Dentro do estado do Mato Grosso, a principal região produtora é o norte do estado, onde se encontram municípios como Sorriso, Sinop, Lucas do Rio Verde, Nova Mutum, entre outros.”

 

Mudanças climáticas e os reflexos no Canal do Panamá

 

Uma grande seca assola a América do Sul e isso está refletindo na dinâmica da passagem de navios pelo Canal do Panamá, que liga o oceano Atlântico ao oceano Pacífico. Os reflexos já se fazem sentir nos custos dos fretes dos grandes navios que levam grãos e minérios e mercadorias para o mundo inteiro e que têm que fazer a travessia para o oceano Pacífico e vice-versa.

Algumas grandes empresas de frete já começam a cancelar a passagem pelo Canal do Panamá. A crise teve início em 2020 e vem criando sérias dificuldades para o escoamento de commodities agrícolas, minerais e mercadorias, afetando o comércio mundial. A Autoridade do Canal do Panamá já acendeu o alerta vermelho ao reduzir o número de navios que cruzam o canal para menos da metade por dia e conservar a água suficiente para abastecer as comportas.

 

Como funciona o Canal do Panamá? Qual o papel da água doce, nesse contexto?

 

A água doce é fundamental para o funcionamento do canal que tem 80 km de extensão e é indispensável para o transporte de carga entre os continentes. No entanto, as mudanças climáticas agravadas pelo El Niño já, há algum tempo, tem transformado essa passagem num pesadelo para grandes embarcações que podem chegar a 350m de comprimento. Para cruzar o canal cada navio pode utilizar 200 milhões de litros de água doce que acabam perdidos para o mar, na maior parte.

A hidrovia do Canal do Panamá facilitou o tráfego de produtos do mundo todo e evitou a perigosa passagem pelo sul da América do Sul, pelo cabo Horn. Para se ter uma ideia da sua importância 14 mil navios cruzaram o canal em 2022. No entanto, esse número está sendo reduzido. O tráfego entrega mercadorias e insumos comercializados entre a Ásia e as Américas, principalmente para a costa leste dos Estados Unidos.

A espera na fila, para cruzar o canal, tem chegado a semanas, o que torna os fretes incrivelmente mais caros e o prazo de entrega mais longo. A crise já começa a afetar o abastecimento de alimentos e causar prejuízos e escassez dos produtos no mundo inteiro. O Brasil precisa se preparar para superar mais essa dificuldade que poderá afetar os resultados de seu crescimento. O governo já detalhou a iniciativa para criar rotas entre o Brasil e países da América do Sul[6] para integração regional[7] e entre elas está construir a Rota de Capricórnio[8]: um corredor bioceânico, desde os estados de Mato Grosso do Sul, Paraná e Santa Catarina, ligado, por múltiplas vias, ao Paraguai, Argentina e Chile, e ter uma saída no oceano Pacífico.

 

A crise no Canal do Panamá, hoje[9]

 

O Lago Gatún, artificial, que abastece a cidade do Panamá, está abaixo do seu nível normal. A falta de chuvas tem agravado ainda mais a situação no canal, fato que preocupa as autoridades. A revista Nature publicou um estudo que dá um alerta sobre a seca extrema que afeta o Panamá. Não há dúvida sobre como um colapso pode atingir e inflacionar o transporte marítimo de mercadorias no mundo inteiro. A crise hídrica do canal precisa ser resolvida. Mas, quais as alternativas disponíveis a curto prazo? Os Estados Unidos já começaram a planejar o seu futuro.

 “Como alternativas reais e viáveis estão a otimização do sistema ferroviário e rodoviário dos Estados Unidos, bem como a construção no México do Corredor Interoceânico no Istmo de Tehuantepec”, afirma Roberto Durán, professor e pesquisador da Escola de Governo e Transformação Público do Tecnológico de Monterrey (TEC) no México.

E se o Canal do Panamá, longe de poder ampliar essa capacidade, é limitado, aí temos um problema”, afirma Durán.

Os panamenhos também são vítimas dessa grave crise que pode impactar o mundo todo. São 4,2 milhões de habitantes, metade da população do Panamá, que também dependem da bacia hidrográfica e que disputam a água usada pelo canal. Desde 2017 há um projeto para criar 16 eclusas por dia. Mas a execução requer condições especiais como reformas legais e aprovações políticas num momento em que o governo atual está prestes a terminar.

A solução do impasse no Canal do Panamá[10], também passa por outras questões como impactos sobre populações tradicionais no caminho do projeto de ampliação do canal. Indenizações, política, eleições e custos se somam à consulta aos habitantes do Rio Índio necessário para a construção de uma das barragens. Diante de todos os entraves a resolução do problema pode levar muitos anos e afetar a demanda de produtos, commodities agrícolas e minerais na economia mundial.

 

Ferrogrão: qual a relação com o Canal do Panamá?

 

O projeto da EF-170 ou Ferrogrão, criado há 20 anos (2014), por tradings do agronegócio: ADM, Cargill, Bunge, Louis Dreyfus e Amaggi) e agora está sendo tratado de forma diferente, diante da sentença imposta pelo Ministro Alexandre de Moraes, no STF, que decidiu pela retomada dos estudos STF.

O Ministério dos Transportes tenta superar a crise que atrasa os objetivos do governo que colocou o projeto da ferrovia no Novo PAC. Para cumprir a determinação de Alexandre de Moraes criou, em novembro de 2023, um Grupo de Trabalho, GT Ferrogrão, para ouvir integrantes de áreas do governo ligadas à infraestrutura, aos ministérios dos transportes, do meio ambiente, dos direitos humanos, dos povos indígenas; com a participação do ICMBIO, lideranças indígenas, organizações da sociedade civil e movimentos sociais. O GT ouviu os convidados sobre os impactos esperados se a Ferrogrão saísse do papel.  

Não restam dúvidas quanto aos impactos sociais e ambientais produzidos pela já construída BR-163 - que data dos anos 1970 - herdados pelos povos da região poderiam se somar aos da ferrovia se ela fosse construída, considerando que o traçado previsto é paralelo ao da rodovia.  As reuniões do GT Ferrogrão ajudaram o governo a dar a verdadeira dimensão do descontentamento, da revolta dos povos indígenas e dos movimentos locais que acompanharam as discussões.

 

Ferrogrão e seus idealizadores condenados pelo Tribunal Popular

 

No início do mês de março, um grande Tribunal Popular[11], em Santarém, PA, promovido pelos indígenas Munduruku, Kayapó, Panará, Apiaká, Kumaruara, Tupinambá e Xavante, quilombolas e comunidades tradicionais, agricultores familiares, assentados, e movimentos sociais da região do Tapajós e Xingu, julgou a ferrovia e as grandes tradings internacionais que criaram o projeto.  O julgamento resultou numa sentença condenatória[12] - Tribunal Popular “Ferrogrão no banco dos réus” - que elenca os impactos sociais e ambientais que fariam sucumbir a Amazônia e seus povos originários.  Os estudos foram considerados falhos e a ideia da construção da ferrovia foi definitivamente rechaçada. Definitivamente não aceita pelos povos indígenas e movimentos sociais.

Dias 7 e 8 de abril de 2024, o Ministério dos Transportes realizará um Seminário do GT Ferrogrão, em Santarém (PA), em que ouvirá indígenas e movimentos sociais e apresentará as manifestações finais, e conclusões do GT, além de apresentações dos convidados e dos integrantes dos ministérios, com o objetivo de concluir as discussões sobre a viabilidade da Ferrogrão. O governo certamente apresentará uma revisão dos estudos de viabilidade econômica, ambiental, técnica e social, que teve a última atualização em 2020.

Muito recurso já foi investido para manter esse projeto sob os holofotes da sociedade, principalmente com a força das tradings Cargil, Amaggi, Louis Dreyfus, acompanhados da Confederação Nacional da Agricultura (CNA), indústrias ligadas ao agro e à pecuária. Já chega dessa inversão de valores. Até no Panamá uma comunidade, a do Rio Índio, tem o poder constitucional de recusar a construção de qualquer projeto que possa prejudicar suas vidas.

No entanto, não pode haver conclusão favorável sobre construir uma obra na Amazônia com os comprometimentos já amplamente apresentados que vão desde a falta de Consulta Livre, Prévia e Informada aos povos indígenas conforme a Resolução 169 da OIT, da qual o Brasil é signatário, até as questões mais subjacentes que levariam à destruição do bioma mais importante do planeta. Nesses meses em que o GT Ferrogrão funcionou ficou amplamente constatada, pelas manifestações apresentadas, a inexequibilidade econômica, financeira, ambiental e estratégica do projeto que nasceu morto.

 

PROJETOS DE LEI QUE AMEAÇAM ÁREAS DE FLORESTA NA AMAZÔNIA

 

Neste 20 de março de 2024, a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados votou o PL 364/2019 que põe em risco a integridade de todos os biomas brasileiros: mais de 50% do Pantanal, 32% dos Pampas e 7% do Cerrado, além de ameaçar diretamente 15 milhões de hectares na Amazônia[13].   Esses “números representam mais de 16 vezes a última taxa de desmatamento do bioma (2022-2023), de 900 mil hectares”.[14]  Leia A NOTA TÉCNICA E JURÍDICA da SOS Mata Atlântica.

  

“Os municípios afetados em mais de 50% de seu território por UCs de domínio público e Terras Indígenas devem ser beneficiados com a redução da Reserva Legal, não apenas para fins de recomposição, pois já contribuem expressivamente com a conservação ambiental e sofrem em demasia com as restrições de ordem econômica que essa contribuição impõe.” (Texto PL 3334/2023 sobre redução Reserva Legal na Amazônia Legal)

 

E SEM A FERROGRÃO?

 

Diante dos cenários apresentados abaixo, a Ferrogrão, na Amazônia, é perfeitamente dispensável, a menos que estejam considerando induzir a ocupação de áreas de floresta nas regiões dos portos do Arco Norte, na bacia do Tapajós, ao longo da BR-163, até Sinop no MT.

Conforme o Caderno de Demanda dos estudos atualizados em 2020, temos os seguintes cenários, com o andamento da construção de outras ferrovias: a FICO e sua extensão até Porto Velho (RO), a extensão da RMN de Rondonópolis/MT até Sinop/MT, a extensão da FNS de Açailândia/MA até Barcarena/PA, a FIOL (Caetité a Ilhéus) e FNS (Porto Nacional a Estrela d’Oeste) prevista para 2030;

No Cenário (2035):  FIOL (Caetité-Figueirópolis); FICO (Lucas do Rio Verde-Campinorte); TLSA; FNS (Açailândia-Barcarena);

No Cenário 3 (2045): a Extensão FICO (Lucas do Rio Verde-Porto Velho); Extensão FNS (Panorama-Rio Grande);

A Ferrogrão, se construída, teria o potencial de induzir a ocupação e destruição da Amazônia na região dos portos do Arco Norte e em seu traçado no rumo Sul. Diante disso, está mais claro ainda, que a demanda teria origem ao longo da BR-163 e que já tem um projeto de duplicação no trecho do Estado do Pará.

A cidade de Sinop, no Mato Grosso, apesar de ser considerada o início ou zona de origem, de acordo com o Caderno de Demanda (ANTT, 2019a), na verdade, estaria mais para zona de destino, diante do incremento da região produtora na zona do traçado previsto da ferrovia, e no Arco Norte, onde se encontram as Zonas de Consolidação e Expansão. Como já citado, as demais ferrovias seriam complementos.

 

 

O fim da economia da floresta em pé e a questão fundiária nas Zonas de Consolidação e Expansão no Estado do Pará

 

“Com 144 municípios distribuídos em um território de 1.247.689,6 km2, tem-se 65% da área total (810.998,18 km2 ) correspondem à zona de conservação ambiental; e os 35% (436.691,33 km2 ) restantes correspondem à zona de consolidação e expansão da economia do Pará” (CARVALHO et al., 2014).

“Em resumo, o ZEE prevê 65% da área do Estado do Pará para conservação e uso florestal e 35% para a consolidação de atividades produtivas, principalmente a agropecuária

Dos 14 polígonos florestais identificados, 10 polígonos (77% da total estudada) estão totais ou parcialmente situados na zona destinada às Unidades de Conservação de Uso Sustentável. Por outro lado, os outros quatro polígonos florestais estão totalmente localizados em zonas destinadas à consolidação do desenvolvimento de atividades produtivas (somando 23% da área estudada)” (IMAZON, 2006).

O Decreto 1164/1971[3] pode ser apresentado como o AI 5 fundiário da Amazônia, pois autorizou o general Emílio Garrastazu Médici, presidente na ditadura, a praticar o genocídio dos povos indígenas da Amazônia, ao declarar que a floresta e os indígenas seriam empecilho ao “desenvolvimento” da pecuária e da produção de commodities agrícolas, na região, em substituição à floresta nativa.


Esse Decreto foi a base da política genocida instituída pelos ditadores militares no Brasil, pois autorizou o contato forçado, a retirada desses povos de seus territórios tradicionais, além de expor, propositalmente, essas comunidades às doenças desconhecidas de seu sistema imunológico e que exterminaram grupos indígenas.

 Além disso, a estrutura fundiária que induzia a uma falsa ideia de colonização, repassou milhares de hectares de terras públicas, por meio de contratos de concessão, para grupos políticos e econômicos apoiadores do regime da época.


 A constituição das Glebas Públicas Federais, os Contratos de Alienação de Terras Públicas (CATPs), Contratos de Domínio de Terras Públicas (CCDTP) e outros de denominações várias, somados à declaração que tornou indispensável à segurança e ao desenvolvimento nacionais, terras devolutas situadas na faixa de cem quilômetros de largura em cada lado do eixo de rodovias na Amazônia Legal[15].

Essa herança do Estado de Exceção, Lei 1.164/1971, totalmente revogada pela Lei 2.375, de 24 de novembro de 1987[16], sem cessar os seus efeitos já consolidados, acabou por construir um ambiente propício para implantação da infraestrutura ligada às atividades de exploração extensiva e intensiva de minério, à introdução do cultivo de grãos e criação de gado na Amazônia, às linhas de transmissão de energia elétrica, à construção de grandes hidrelétricas e, atualmente, a possibilidade de implantar a  Ferrogrão – EF-170[4] com a justificativa de escoar a exportação de commodities agrícolas, do Norte do Mato Grosso[17], para o Arco Norte.


 Essa herança deixada pela Ditadura Militar não foi questionada e nunca passou por uma revisão ou debate público com a academia, ou com a sociedade civil amazônica ou com o restante do país, de forma democrática. Na verdade, essa herança se tornou a base de todas as políticas de desenvolvimento econômico da Amazônia, passando por todos os governos, incluindo os democráticos.

 Só assim, com essa herança, seria possível tentar implantar um eixo ferroviário ligando Miritituba, distrito do município de Itaituba/PA à cidade de Sinop/MT, com a construção do primeiro trecho de aproximadamente 933 km, a ser complementado por dois ramais: Santarenzinho, entre Itaituba/PA e Santarenzinho, distrito do município de Rurópolis/PA, com cerca de 32 km; e Itapacurá, localizado integralmente no município de Itaituba/PA, com aproximadamente 11 km.

 

A bacia do tapajós e a configuração fundiária como indutora do início do cultivo de grãos

 

Com 81 sub bacias, a bacia hidrográfica do Rio Tapajós tem 764.183 km² e está incrustrada entre o Estado do Pará e Mato Grosso. Antes, a bacia do Tapajós era considerada o território tradicional de vários povos indígenas e de perambulação de indígenas isolados. Parte desses povos foi removida, compulsoriamente, para o Parque Nacional do Xingu ou teve seus territórios reduzidos drasticamente, colocando em risco sua evolução cultural, social e física. Depois da remoção desses povos indígenas de seu habitat, essa parte importante da floresta amazônica foi escancarada à exploração madeireira, à agropecuária e, agora, à implementação da produção extensiva de soja onde havia floresta e biodiversidade. A Ferrogrão se encaixaria nesse contexto, segundo o governo e o agronegócio.

 A bacia do Tapajós sofre com uma vasta área de mineração ilegal, garimpo, avanço da produção de grãos no sentido norte – sul e sul – norte, onde a cada dia a floresta é derrubada e substituída pelo agrobusiness, conforme o planejamento estratégico da década de 1970[5]. Essas condições, atualmente, só ocorrem com a anuência do Governo Federal e, de quebra, leva à exploração ilegal de madeira, fundamental na economia ilícita local.


Mas, a grande contribuição é o caos fundiário [6], em que a grilagem é a forma mais eficiente de acesso às terras públicas [7].

 A estratégia do avanço dos grãos na calha norte do Rio Amazonas,[8] gera impactos associados à saúde [9] humana e animal em virtude do uso de pesticidas em larga escala [10]. Isso inflama os conflitos agrários e fundiários na região.

 Novas ferramentas, como o Zoneamento Ecológico- Econômico (ZEE) foram necessárias na organização fundiária do Pará, para que a floresta não fosse substituída pelas atividades agrícolas e pecuária.  O ZEE do Pará foi [11] atualizado em 04/10/2019 e criou, ao longo da BR 163, ou seja, no mesmo traçado da EF – 170, Ferrogrão, as Áreas de Investimento Intensivo (AII), com ocupações urbana e rural consolidadas, em que se concentram a infraestrutura e a atividade econômica em áreas de cobertura florestal e recursos naturais já explorados.

 As áreas de Investimento Intensivo (AII), o que no mapa [12] da página do Governo do Estado do Pará é chamada de Zona de Consolidação, na região da Bacia do Tapajós, propiciam as condições ideais para o cultivo de grãos e exploração da mineração.


Segundo o Deter [13] do INPE, só na Bacia do Tapajós, entre 2016 e 2023, foram detectados 4.452 pontos de mineração/garimpos. Ou seja, toda a contaminação por mercúrio dessa região vai para o rio Tapajós.  Na bacia do Tapajós estão contabilizados 18.603 (dezoito mil seiscentos e três) processos minerários para exploração. A Província Mineral do Tapajós está na área de influência do traçado da Ferrogrão.

 “Província Mineral do Tapajós

A Província Mineral do Tapajós, localizada no Estado do Pará e em parte do Estado do Amazonas, possui mais de 80.000 km2 e é limitada a leste e a oeste pelos rios Iriri e Abacaxis, respectivamente, ao norte pela borda da Bacia do Amazonas e ao sul pela Serra do Cachimbo (COUTINHO, 2008a). Apesar da sua extensão, a variedade de bens minerais restringe-se ao ouro e, em muito menor proporção, estanho e volfrâmio. A produção de ouro sempre foi expressiva, e rendeu à PMT o título de maior produtora deste bem entre as décadas de 70 e 90”.[18]


Só o anúncio da possibilidade da construção da Ferrogrão bastou para aquecer o mercado ilegal de terras, ampliou o número de queimadas e colocou em risco os Assentamentos Rurais, Unidades de Conservação e Terras Indígenas.  

Florestas públicas não destinadas

 

As Florestas Públicas do TIPO B (FPB) conhecidas como florestas não destinadas [19]estão localizadas em áreas arrecadadas pelo Poder Público, mas que ainda não foram destinadas.

O conceito administrativo e jurídico de florestas públicas não destinadas[20] foi cristalizado com a Lei 11.284/2006[21], alterada pela lei nº 14.590, de 24 de maio de 2023, reforçou sua função social, econômica, ecológica e climática. A lei concedeu a função econômica voltada ao Manejo de bens e serviços florestais.

Hoje, na Amazônia, segundo o Serviço Florestal Brasileiro[22] há aproximadamente 60.316.501 hectares[23] (sessenta milhões, trezentos e dezesseis mil, quinhentos e um hectares) de florestas públicas que têm o potencial de gerar emprego e renda com a florestas em pé.

O impacto da Zona de Consolidação, presente no Zoneamento Ecológico-Econômico[24], é de conflito quando o uso não se harmoniza com a destinação das florestas públicas tipo b. A função social/ecológica/econômica desfaz a tese levantada pela Ministra de Meio Ambiente e Clima do Brasil, Marina Silva, ao afirmar[25] que a floresta em pé deve ser viável economicamente.

O projeto da EF-170, Ferrogrão, provocaria desmatamento direto e indireto, apenas com o anúncio de sua construção, a exemplo do que ocorreu com o licenciamento da hidrelétrica Belo Monte[26].

 



 

REFERÊNCIAS

 

[1]Consultora da Society for Threatened Peoples, Switzerland ( STP), Associação para os Povos Ameaçados (APA), com sede na Suíça, pesquisadora independente, Certificado em Jornalismo Investigativo pela Transparência Internacional, Colunista do Jornal Correio da Cidadania, desde 2012, Licenciatura em Pedagogia e Orientação Educacional, Faculdade Carlos Pasquale, Liceu Acadêmico São Paulo (SP); Pesquisadora e especialista em análise de processos de licenciamento ambiental de grandes obras na Amazônia; autora de centenas de artigos sobre meio ambiente; palestrante e coautora em livros e publicações sobre hidrelétricas; autora do livro Os Cedros, sobre linha de transmissão Itaberá-Tijuco Preto.

[2] Consultor, Pesquisador e Empreendedor Social em Sustentabilidade e Floresta. Lic em Ciências Exatas e Naturais e Mestre em Agricultura Amazônicas e Desenvolvimento Sustentável pela Universidade Federal do Pará (UFPA) em parceria com a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), atuou em várias organizações no Brasil, como Conselho Indigenista Missionário (1988 – 2002), Comissão Pastoral da Terra (2002 a 2006), Assessor Técnico do Componente Gestão Florestal do Programa para a Proteção e Gestão Sustentável das Florestas Tropicais da Deutsche Gesellschaft für Technische Zusammenarbeit  (GTZ) GmbH (2009 – 2011), entre 2011 - 2017 foi Assessor Técnico Judicial e Extrajudicial do Ministério Público do Estado do Pará para temas agrários, fundiários e ambientais. Homenageado pelo Goldman Environmental Prize (2006). Consultor da Climate and. Land Use Alliance (2018 a 2024 (jan)). Hoje é articulador no Brasil da Coalizão Forest & Finance e faz parte da Articulação Nacional das Pastorais de Ecologia Integral do Brasil e é Conselheiro Municipal de Meio Ambiente e Clima no biênio de 2024 a 2026 no Conselho Municipal de Meio Ambiente da Cidade do Rio de Janeiro (CONSEMAC), graduando em Direito na Universidade Estácio de Sá no Rio de Janeiro. – tarcisio@ran.org

[3]https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del1164.htm#:~:text=DEL1164&text=DECRETO%2DLEI%20No%201.164,1%C2%BA%20DE%20ABRIL%20DE%201971.&text=Declara%20indispens%C3%A1veis%20%C3%A0%20seguran%C3%A7a%20e,Legal%2C%20e%20d%C3%A1%20outras%20provid%C3%AAncias

[4]https://www.gov.br/antt/pt-br/assuntos/ferrovias/novos-projetos-ferroviarios/ferrograo-ef-170

[5]https://snh2017.anpuh.org/resources/anais/54/1488736405_ARQUIVO_textocompletoST.pdf

[6] https://www.scielo.br/j/ea/a/pstJcmXTJKSNGRYZNLPWhsN/

[7]https://governancadeterras.com.br/wp-content/uploads/2018/03/ARTIGO_MONTEIRO_TRECCANI_SGTDE2018FINAL-1.pdf

[8] https://www.agrolink.com.br/regional/pa/alenquer/estatística

[9]https://mapadeconflitos.ensp.fiocruz.br/conflito/pa-pequenos-produtores-rurais-da-regiao-de-santarem-sao-expulsos-pelo-avanco-da-soja-alem-de-sofrer-com-os-danos-a-saude-causados-pelos-agrotoxicos-usados-pela-monocultura/

[10]https://agenciabrasil.ebc.com.br/radioagencia-nacional/saude/audio/2023-03/agrotoxico-em-plantacao-de-soja-intoxica-alunos-de-escola-no-para

[11] https://www.semas.pa.gov.br/legislacao/normas/view/505

[12] https://www.semas.pa.gov.br/diretorias/digeo/zee/

[13] O DETER é um levantamento rápido de alertas de evidências de alteração da cobertura florestal na Amazônia, feito pelo INPE. O DETER foi desenvolvido como um sistema de alerta para dar suporte à fiscalização e controle de desmatamento e da degradação florestal realizadas pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) e demais órgãos ligados a esta temática. –http://www.obt.inpe.br/OBT/assuntos/programas/amazonia/deter/deter#:~:text=O%20INPE%20enfatiza%20que%20o,como%20taxa%20mensal%20de%20desmatamento 

 

 



[2] O economista Claudio Frischtak, em apresentação na reunião do GT Ferrogrão, no Ministério dos Transportes, em 7 de fevereiro de 2024, demonstrou os equívocos dos números apresentados nos estudos técnicos atualizados em 2020.

[7] Serão cinco rotas de integração e desenvolvimento:

Rota da Ilha das Guianas: inclui integralmente os estados do Amapá e de Roraima e partes do território do Amazonas e do Pará, sendo fronteiriça com a Guiana, a Guiana Francesa, o Suriname e a Venezuela.

Integração Regional - Rota Multimodal Manta-Manaus: contempla inteiramente o estado Amazonas e partes dos territórios de Roraima, Pará e Amapá, interligando-se por via fluvial a Colômbia, Peru e Equador.

Rota do Quadrante Rondon: formado pelos estados do Acre e de Rondônia, por toda a porção oeste de Mato Grosso, com conexões via Bolívia e Peru.

Rota de Capricórnio: desde os estados de Mato Grosso do Sul, Paraná e Santa Catarina, ligada, por múltiplas vias, ao Paraguai, Argentina e Chile.

Rota Porto Alegre-Coquimbo, abrangendo o Rio Grande do Sul, integrada à Argentina, ao Uruguai e ao Chile.

[15] DEL1164. DECRETO-LEI No 1.164, DE 1º DE ABRIL DE 1971

[16] Todas as concessões de terras das faixas de 100km de largura ao longo das rodovias na Amazônia Legal, feitas entre abril de 1971 e novembro de 1987 não foram revogadas.

[17] Caderno de Demanda

[19]  “bens sob o domínio da União, dos Estados, dos Municípios, do Distrito Federal ou das entidades da administração indireta”

 [20]  https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2006/Lei/L11284.htm

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