terça-feira, 30 de novembro de 2010

Belo monte de violências


Durante o V Fórum Pan-Amazônico 2010, que aconteceu de 25 a 29 de novembro, em Santarém, Pará, foi editada a série de dez artigos sobre Belo Monte, escritos pelo Procurador da República Felício Pontes Jr. A publicação, iniciativa do Movimento Xingu Vivo para Sempre, teve o objetivo de lembrar os dez anos de batalhas judiciais contra violações à lei, ao meio ambiente e ao ser humano na Amazônia. Disponibilizamos abaixo todos os artigos em seqüência.


No ano 2000 houve um encontro de procuradores da República com os indígenas do Xingu. Representantes do povo Juruna, da Volta Grande do Xingu, disseram que encontraram nas margens do rio várias tábuas com números gravados. Eram réguas de medição. Estavam assustados. Temiam que fosse mais uma tentativa de construir uma barragem no Xingu. A lembrança do I Encontro dos Povos Indígenas do Xingu em 1989, quando a índia Kaiapó Tuíra passou o facão no rosto de um dirigente da ELETRONORTE, ainda estava nítida. Continue lendo Belo monte de violências I
Belo monte de violências (II)

A primeira ação judicial apontando os erros da UHE de Belo Monte durou quatro anos (2001-05), como se viu no artigo anterior. Foi o tempo que o governo federal levou para se conscientizar, após perder em todas as instâncias, de que o projeto não poderia ser executado como previsto: sem o licenciamento ambiental do Ibama e; sem a autorização do Congresso Nacional, já que o projeto afetaria terras indígenas. Continue lendo Belo monte de violências II
Belo monte de violências (III)
Este é o terceiro texto da série de artigos “Belo Monte de Violências”, que pretende informar o porquê de o Ministério Público Federal (MPF) ter ingressado com nove ações judiciais contra o projeto de construção da Usina Hidrelétrica (UHE) de Belo Monte, no rio Xingu. Cada semana uma ação é comentada neste espaço.
Os dois primeiros artigos demonstraram que o licenciamento foi realizado sem que nenhuma comunidade indígena atingida fosse ouvida pelo Congresso Nacional, o que é contrário ao artigo 231 §3º Constituição do Brasil. Portanto, a UHE de Belo Monte passou pelo Congresso em tempo recorde, sem a realização do grande debate nacional. Continue lendo Belo monte de violências III
No início de 2007 um fato inusitado surpreendeu o Ministério Público Federal – MPF. Os índios da Volta Grande do Xingu avisaram que o fluxo de voadeiras subindo e descendo o rio estava acima do normal. Disseram que “brancos”, portando máquinas fotográficas, filmadoras e outros equipamentos que não souberam identificar, paravam nas margens do rio, entravam pelos igarapés e recolhiam materiais do solo e da flora, sem pedir licença.
A suspeita era de que se tratava do início do Estudo de Impacto Ambiental (Eia) de Belo Monte. Até aí a coisa era previsível, embora parecesse muito rápido o processo de licitação para escolher quem faria esse estudo. Ainda estava presente a lembrança do que aconteceu em 2000, quando a Eletronorte gastou R$ 4,8 milhões em um EIA que não serviu para nada, pois o licenciamento estava se dando no órgão ambiental do Pará, e não no Ibama, como manda a lei. Continue lendo Belo monte de violências IV 
Organizada em nove textos, a série de artigos está sendo publicada semanalmente pelo Diário do Pará aos domingos, no caderno Brasil.
Desde a década de 90, tudo que os indígenas do Xingu solicitavam era falar com o presidente da República sobre Belo Monte. Uma das tentativas de suas entidades foi promover o II Encontro dos Povos Indígenas do Xingu, na cidade de Altamira/PA, em maio de 2008. A população local se preparou para receber os indígenas. No ginásio que sediou o evento milhares de pessoas lotavam as arquibancadas. Os indígenas entoavam cantos e gritos de guerra como se desejassem que sua voz ecoasse Xingu a fora. Continue lendo Belo monte de violências V
As empreiteiras Camargo Corrêa, Norberto Odebrecht e Andrade Gutierrez, associadas à Eletrobras, entregaram ao Ibama, em 2009, o Estudo de Impacto Ambiental de Belo Monte e o seu Relatório (EIA/Rima). O documento estava incompleto. A pressa em obter a licença ambiental era tão grande que alguns estudos fundamentais não tinham sido terminados, entre eles o espeleológico (das cavernas); a qualidade de água; e as informações sobre as populações indígenas. O próprio Relatório de Impacto Ambiental (RIMA), que é um resumo do EIA com linguagem acessível, não havia sido apresentado a contento, segundo o Ibama. Continue lendo Belo monte de Violências VI
Em cada fase do processo de licenciamento de Belo Monte houve ilegalidades, mas nada se compara ao Estudo de Impacto Ambiental (Eia). Um pool de organizações não-governamentais, chamada Movimento Xingu Vivo para Sempre, criou o “Painel de Especialistas” com 39 cientistas de várias universidades brasileiras só para analisá-lo. 
E apesar do pouco tempo que o Ibama concedeu, o Painel constatou desde a falta de estudos em determinadas áreas até erros grosseiros de dados que inviabilizam Belo Monte. Belo monte de violências VII
As audiências públicas de Belo Monte não serviram para nada. Todo o esforço da sociedade civil, sobretudo dos 39 cientistas que compõem o Painel dos Especialistas que estudaram o impacto da barragem, foi desprezado, como mostra o parecer do Ibama de 23.11.09: “tendo em vista o prazo estipulado pela Presidência, esta equipe não concluiu sua análise a contento. Algumas questões não puderam ser analisadas na profundidade apropriada, dentre elas as questões indígenas e as contribuições das audiências públicas.” Continue lendo Belo monte de violências VIII
A violência do governo em construir Belo Monte a qualquer custo não atinge apenas os povos indígenas do Xingu, os não-indígenas e o meio ambiente. Atinge o bolso de todo o contribuinte brasileiro, cada um de nós. Isso porque os últimos cálculos demonstram que ela custará mais de 3/4 do que custou Itaipu com a produção de energia de apenas 1/4 desta. Não existe geração de energia sem impactos, mas o custo dos impactos das hidrelétricas na Amazônia são tão fortes que elas não podem ser consideradas nem limpas nem baratas. Continue lendo Belo monte de violências IX
A Licença Prévia (LP) de Belo Monte foi concedida pelo Ibama com 40 condicionantes ambientais e 26 indígenas em fevereiro de 2010. A LP não permite o início da obra. Trata-se apenas de uma licença preliminar de planejamento. Por ela o órgão licenciador diz que estão aprovadas localização e concepção do empreendimento. Para que a obra propriamente dita possa ser iniciada é necessária a obtenção de uma outra licença – a Licença de Instalação (LI). Continue lendo Belo monte de violências X

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Teles Pires e Tapajós: barragens transformarão os rios numa série de lagos

Indígenas Munduruku
Foto: Telma Monteiro

Movimentos Sociais exigem cancelamento de audiências públicas para UHE Sinop
Com uma passeata pelo centro da cidade Sinop (MT) uma aliança de movimentos sociais exige o cancelamento das audiências públicas referente à construção da hidrelétrica Sinop, uma das hidrelétricas que comporão o Complexo Tapajós. Os movimentos sociais são contra a construção destas usinas por causa dos desastrosos impactos sócio-ambientais e irreversíveis para a região. Será a morte dos rios Teles Pires e Tapajós.
 Comunicado à imprensa recebido dos movimentos que participaram do Seminário em Sinop, MT

O ato público encerra o seminário Amazonas em Debate: Compromissos das Universidades Públicas e Movimentos Sociais, que reuniu aproximadamente 500 pessoas do Mato Grosso, Pará e Mato Grosso do Sul, nos dias 10 a 12 de novembro, na paróquia da igreja São Cristovão em Sinop.

Nos três dias de debates e palestras professores das universidades estadual e federal de Mato Grosso e representantes dos movimentos sociais apresentaram temas como a história da ocupação da região Amazônica, a lógica do mercado de energia no Brasil e no mundo, os impactos sociais e ambientais da implantação de hidrelétricas em geral e especificamente no caso de Sinop e o complexo Tapajós.

A conclusão foi clara: o complexo de barragens transformará os rios Teles Pires e Tapajós numa série de lagoas de água estagnada, suja e morta, eliminando uma grande parte da biodiversidade, despojando milhares de pessoas, impactando comunidades tradicionais como povos indígenas, ribeirinhos, pescadores, pequenos agricultores e retireiros. Ao mesmo tempo, a energia gerada atenderá apenas às demandas da região sudeste do Brasil, criando poucos empregos para a região e muito lucro para as empresas de construção e de energia.

Cada entidade e comunidade presente deixou muito claro que está lutando em favor de uma sociedade justa e um modelo econômico verdadeiramente sustentável, com inclusão de todos os cidadãos, com outro modelo energético e respeito ao meio-ambiente. Um progresso que o modelo econômico vigente, o capitalista, não pode realizar. O complexo Tapajós também não atende a estas demandas, já que não está priorizando o homem, nem o meio-ambiente em que vive, mas os benefícios econômicos.

O último dia, sexta-feira, dedicou-se à definição da resistência contra as barragens. Formalizou-se o Fórum Teles Pires Vivo, que reúne as entidades presentes na luta contra as barragens da região. Discutiu-se o posicionamento frente às audiências públicas, consideradas como mero ritual para legitimar o empreendimento, a mobilização das bases na luta, e seus próximos passos, as alianças a serem realizadas a nível regional, nacional e internacional.

As entidades convidam outros movimentos e pessoas para aliar-se na luta contra as barragens.
  
Organizaram e participaram do seminário
  • ADOURADOS
  • ADUEMS
  • ADUFMAT
  • ADUNEMAT
  • CIMI
  • Colônia dos Pescadores – Sinop
  • Comunidades Eclesiais de Base
  • CPT
  • Fórum Mato-grossense de Meio-ambiente (Formad)
  • MAB
  • Movimento de Mulheres Camponesas
  • MPA
  • MST
  • OAB – Sinop
  • OPAN
  • Pastoral da Juventude Rural
  • Povo indígena Apiaká
  • Povo indígena Bakiarí
  • Povo indígena Enawene Nawe
  • Povo indígena Irantxe
  • Povo indígena Kaiabí
  • Povo indígena Karajá
  • Povo indígena Munduruku
  • Povo indígena Panará
  • Povo indígena Rikbaktsa
  • Povo indígena Yudja
  • Retireiros do Araguaia
  • Secretaria Regional Pantanal do ANDES SN
  • Sindicato de Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais (STTR) – Sinop, Lucas do Rio Verde e Barão de Melgaço
  • SINDISEP
  • SINTEP
Informações:
Susy: (65) 3627 6777 ou (65) 3627 7304 (andesvpr@uol.com.br)
Sanches (65) 3664 4704 ou (65) 9223 7579
Joangela (66) 3511 2131 ou (66) 8423 8097

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

A fraude de Barra Grande foi esquecida?

O consórcio Energética Barra Grande S.A. – conhecido como BAESA e formado pelas empresas Alcoa, Votorantin, Bradesco, Camargo Correa e CPFL – vem recebendo diversos prêmios, em diversas áreas, por parte de entidades públicas e privadas. O que parece já estar esquecido nessas premiações é que o recente episódio da polêmica e irregular licença a este empreendimento acabou causando uma das maiores tragédias sobre a biodiversidade do sul do Brasil.


Cânion de Encanados que ficou debaixo d’água.
A BAESA se baseou em um EIA-RIMA fraudulento, entregue ao IBAMA pela empresa Engevix. Neste relatório foi sonegada a informação da presença de mais de 6 mil hectares de floresta com araucária em estado virgem ou avançado de regeneração, que juntamente com os mil hectares de campos naturais formavam mais de 85% da área alagada. A empresa apresentou um gráfico, em seu estudo, que dava conta de somente 9% de florestas, o que depois se comprovou que eram 70% de florestas. No tal relatório, era afirmado que na área afetada “a maior parte a ser encoberta é constituída de pequenas culturas, capoeiras ciliares e campos com arvoredos esparsos”, e que “a formação dominante na área a ser inundada pelo empreendimento é a de capoeirões que representam níveis iniciais e, ocasionalmente, intermediários de regeneração”. O documento inclusive afirmava que a obra não traria graves prejuízos a bens ambientais importantes ou protegidos pela legislação. Também foi completamente ignorada a

Bromélia Dyckia distachya
presença da bromélia Dyckia distachya, que constava na lista da flora ameaçada do Brasil (IBAMA,1992) e era endêmica dos rios da região, estando hoje praticamente extinta na natureza. A ameaça a extinção também se deu nos peixes exclusivos de corredeiras, que ali viviam e a uma infinidade de espécies pouco estudadas e que ainda não tiveram nenhum acompanhamento ou monitoramento satisfatórios.
O assunto só veio à tona quando a empresa já estava com um muro de 185 metros de altura quase construído e que inundaria mais de 116 km de rio, com a floresta que foi escondida pela empresa e ignorada pelo IBAMA, pois veio das mais de mil famílias desalojadas, muitas sem indenização, que trancaram os acessos à barragem. O governo acabou por reconhecer o erro, mas, apesar da pressão dos movimentos sociais e ambientalistas, deu carta branca à BAESA, alegando o fato consumado, prejuízos econômicos dos gastos já despendidos na obra.


Charge onde a, na época, ministra do MME, Dilma Rousseff, negocia o Termo de Compromisso com o MP.
Apesar de a área ser definida como de Extrema Importância para a Conservação da Biodiversidade, pelos mapeamentos do MMA (2003), pertencer à Zona Núcleo da Reserva da Biosfera da Mata Atlântica, reconhecida pela UNESCO como Patrimônio Natural Mundial e protegida pela Constituição Federal, o IBAMA e o MMA não tomaram providências para sua proteção legal, quando da emissão das licenças ambientais, entre 2001 e 2005. Destruiu-se com o coração da floresta mais contínua e exuberante da bacia do rio Pelotas-Uruguai, justamente onde o vale

Trecho inundado pela UHE Barra Grande
íngreme do rio não permitia a agricultura ou outras atividades econômicas, fato que não é o caso do planalto, acima do vale, onde as florestas restantes são escassas e muito isoladas e impactadas. Depois de Barra Grande, ainda sobram florestas consideráveis a montante, na área agora sujeita por outra hidrelétrica: a UHE de Pai Querê.
Em 2004, a empresa foi obrigada a assinar um Termo de Compromisso com o governo federal e a justiça, sendo que muitas pendências duram até hoje (ver aqui). Segundo o MAB, também estão pendentes indenizações com algumas famílias atingidas.
Vale lembrar que a empresa continuou realizando os desmatamentos quando houve uma liminar, que durou alguns dias, suspendendo o corte de árvores da área.
Um dos aspectos mais patéticos neste triste episódio foi a constatação de que o fechamento das comportas da hidrelétrica se deu de forma apressada, quando da emissão da L.O. (Licença de Operação), em julho de 2005. Para o consórcio foi uma maneira de não gastar nenhum tostão a mais na supressão de metade da vegetação florestal que tinha permanecido e que ficaria afogada com a barragem, e “não perder mais tempo” para retirá-la. Mas não foi só isso, também foi uma maneira de impedir que as ações na justiça, por parte das ONGs, tivessem algum efeito e “atrasassem” o fechamento das comportas e a geração de energia por parte da hidrelétrica. Assim, afogar de vez a floresta foi uma maneira de resolver com celeridade a questão. Ou seja, garantir que o objeto das ações não tivesse mais sentido, pois a natureza já tinha sido destruída irreversivelmente. Como resultado, parte da floresta afogada, até hoje, está apodrecendo embaixo de um reservatório de 9,2 mil hectares de águas praticamente paradas.
Apesar de todas as irregularidades e pendências, o consórcio BAESA ganhou os seguintes prêmios (retirado da página da empresa):
  • Prêmio Empresa Cidadã ADVB – 2005, 2007, 2008, 2009, 2010
  • Prêmio Empreendedor José Paschoal Baggio – 2006, 2008
  • Prêmio Fritz Müller – 2007, 2008, 2009
  • Prêmio Empresa Amiga da Criança – 2008, 2009.
  • Excelência em Gestão Sustentável – 2008, 2010.
  • Prêmio Responsabilidade Social – 2008
  • Empresa Amiga da Criança – 2009
  • Prêmio Ser Humano – 2009
  • Prêmio Ser Humano Oswaldo Checchia – 2010
Como uma empresa que desalojou centenas de famílias, muitas das quais ainda esperam indenização, recebe prêmios de “empresa cidadã”, de “amiga da criança”, de “responsabilidade social”, de “ser humano”? Como uma empresa que causou a destruição dos remanescentes florestais mais exuberantes e contínuos da Mata Atlântica, na bacia do rio Pelotas, configurando-se em uma das maiores tragédias à biodiversidade do sul do país – ainda por cima baseada em um relatório considerado fraudulento – recebe prêmios de “desenvolvimento sustentável”, de “gestão socioambiental” e de “preservação ambiental”? Como conceber que um órgão ambiental governamental, a FATMA, possa conceder um prêmio a uma empresa que esteve envolvida com desastres desta magnitude?


Araucárias alagadas pela UHE Barra Grande
Essa situação de hipocrisia ambiental deve ser denunciada e ilustrar o nível de comprometimento econômico que toma conta de setores públicos e privados, envolvidos com estes empreendimentos. Sem dúvida, fazem parte de uma página infeliz de nossa história na área ambiental, resultado revoltante de um “toma-lá-dá-cá” de favores entre setores empresariais e governamentais, para “dourar a pílula” do processo de degradação atual. Trata-se de um enorme desrespeito às famílias desalojadas e um enorme delito aos milhares de hectares cobertos por plantas nativas e animais silvestres que desapareceram debaixo d’água, além de uma afronta a todas as pessoas que lutaram contra esse triste e histórico crime contra a natureza.
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Para saber mais sobre o caso da UHE Barra Grande, acesse o livro Barra Grande: a hidrelétrica que não viu a floresta.

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Belo monte de violências (VIII)

Artigos de Felício Pontes Jr., procurador da República no Pará e mestre em Teoria do Estado e Direito Constitucional pela PUC-Rio.
 Organizada em nove textos, a série de artigos está sendo publicada semanalmente pelo Diário do Pará aos domingos, no caderno Brasil.


As audiências públicas de Belo Monte não serviram para nada. Todo o esforço da sociedade civil, sobretudo dos 39 cientistas que compõem o Painel dos Especialistas que estudaram o impacto da barragem, foi desprezado, como mostra o parecer do Ibama de 23.11.09: “tendo em vista o prazo estipulado pela Presidência, esta equipe não concluiu sua análise a contento. Algumas questões não puderam ser analisadas na profundidade apropriada, dentre elas as questões indígenas e as contribuições das audiências públicas.”

O Governo simplesmente não deu a mínima para questões que colocavam em xeque a viabilidade do projeto. O objetivo era obter a Licença Prévia, e só.

No final de 2009 a Casa Civil da Presidência da República entra em cena. Presisona dirigentes do Ibama para concederem a licença. Os técnicos dizem que não há tempo nem dados suficientes no projeto do governo. O Diretor de Licenciamento se exonera.

Mesmo assim, o então Presidente do Ibama, Roberto Messias, exige parecer conclusivo de seus subordinados em 27.01.10. Em resposta, os técnicos afirmam que “faltam dados sobre ictiologia, quelônios, cavidades naturais, qualidade da água e hidrossedimentologia.”

Informação técnica em vão. O Ibama concede a licença quatro dias depois, sem os dados. O MPF entra com ação judicial contra o governo, fundamentada em sete irregularidades. Entre elas, destaca-se a quantidade de água que será liberada no trecho de 100 quilômetros da Volta Grande do Xingu, por onde o rio não mais passará em virtude de um desvio. Trata-se de uma região onde habitam pelo menos 12 mil famílias e 372 espécies de peixes.

A Eletrobrás propõe que a Volta Grande seja irrigada com apenas 4 mil m3/s. O Ibama diz que deve ser o dobro e, ainda, assim, com o desaparecimento de várias espécies de peixes.

Os peritos do MPF mostraram que nenhum nem outro têm razão. Analisando o volume de água do Xingu na série histórica de 1971 a 2006, comprovaram que as turbinas só geram energia se passarem por elas 14 mil m3/s de água. Somaram esse volume aos 8 mil m3/s propostos pelo Ibama. Chegaram a 22 mil m3/s.

A conclusão é terrível. Nos 35 anos observados, em 70% do tempo o Xingu não foi capaz de atingir esse volume, nem nas épocas de maior cheia. Portanto, os estudos demonstram que não há água suficiente para gerar energia naquela que, se um dia sair do papel, será a obra mais cara do Brasil.

A carta dos índios, quase dez anos antes desses estudos, soa hoje como profética: “Nós, índios Juruna, da Comunidade Paquiçamba, nos sentimos preocupados com a construção da Hidrelétrica de Belo Monte. Porque vamos ficar sem recursos de transporte, pois onde vivemos vamos ser prejudicados porque a água do Rio vai diminuir, como a caça, vai aumentar a praga de carapanã com a baixa do Rio, aumentando o número de malária, também a floresta vai sentir muito com o problema da seca e a mudança dos cursos dos rios e igarapés”.

Os procuradores da República que redigiram a ação, Cláudio Terre, Bruno Gutschow e Ubiratan Cazetta, concluem que Belo Monte “traz impactos socioambientais sem precedentes na construção de usinas hidrelétricas no Brasil.” A liminar foi concedida e derrubada dias depois. Aguarda-se decisão de mérito. 

Belo Monte: o brilhante voto do Desembargador Federal Souza Prudente

Em 17 de junho de 2010 a Corte Especial do Tribunal Federal da 1ª Região julgou em caráter provisório a Ação Civil Pública ajuizada pelo  Ministério Público Federal do Pará, contra o leilão da usina de Belo Monte.  Em 18 de abri de 2010, o juiz Federal Antonio Carlos Almeida Campelo, de Altamira, havia concedido uma das três liminares que cancelava o leilão, mas ela foi cassada pelo Tribunal, em menos de 24 horas.

Telma Monteiro

O Desembargador Federal Souza Prudente, do Tribunal Federal da 1ª Região, no exercício de seu direito de votar no julgamento em caráter provisório da liminar que cancelou o leilão de Belo Monte, nos deu um presente inesperado. Seu voto, apesar de vencido, é uma linda peça em defesa do princípio da precaução, do Ministério Público Federal do Pará, do Juiz Campelo, do meio ambiente, dos povos indígenas e dos interesses difusos. Souza Prudente começou reforçando sua independência diante da questão e o fato de não concorrer a cargo público e de não dever favores ao governo.

Segundo as notas taquigráficas do seu Voto ele afirmou que ainda não há regulamentação das condições específicas para a exploração de potencial hidrelétrico em terras indígenas; não é possível a atividade de geração de energia através de potenciais de energia hidráulica em terra indígena sem que seja editada a lei.  Para ele, o deferimento de licença prévia, o leilão ou qualquer ato administrativo que autorize  a construção de Belo Monte antes da regulamentação da lei que permitiria atividade em terras indígenas, seriam nulos.   

Afirmou que o Ministério Público  cumpriu seu dever funcional atribuido pela Constituição Federal de instaurar  inquérito civil e  ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos.  Relembrou precedente clássico da relatoria do Ministro Celso de Mello, na Suprema Corte, sobre “a incolumidade do meio ambiente não pode ser comprometida por interesses empresariais, nem ficar dependente de motivações de índole meramente econômica, ainda mais se se tiver presente que a atividade econômica, considerada a disciplina constitucional que a rege, está subordinada, dentre outros princípios gerais, àquele que privilegia ‘a defesa do meio ambiente’ (CF, art. 170, inc. VI), e traduz conceito amplo e abrangente das noções de meio ambiente natural, de meio ambiente cultural, de meio ambiente artificial (espaço urbano) e de meio ambiente laboral”.
              
Souza Prudente citou ainda, da relatoria de Celso de Mello, que o poder público não deve subestimar  e muito menos hostilizar os povos indígenas. Qualquer desenvolvimento que se faça, continua, sem ou contra os indígenas desrespeita a Constituição Federal e fere de morte  o desenvolvimento “tão ecologicamente equilibrado quanto humanizado e culturalmente diversificado de modo a incorporar a realidade vista”.

 “A usina Belo Monte, que se pretende instalar em terras indígenas, até porque não se pode, evidentemente, ignorar o impacto que essa obra, de uma dimensão que atinge a sua qualificação como a terceira maior usina hidrelétrica do planeta, certamente irá atingir as comunidades indígenas e ribeirinhas do rio Xingu não só nos aspectos de ordem de impacto físico-ambiental, mas também de ordem cultural e, finalmente, de ordem moral”.

 No seu voto ele ainda demonstra a relevância da questão indígena nos estudos ambientais, inconclusos, que não permitiriam a concessão da  licença prévia,  a licitação da obra, e o atropelamento do processo legal.  Em dado momento Souza Prudente se supera ao relembrar o princípio da precaução ratificado pelo  Brasil  e que está sendo violentado no caso de Belo Monte

“A Hidrelétrica de Belo Monte, na dimensão em que fora descrita no estudo prévio de impacto ambiental inconcluso é uma ameaça à preservação do maior bioma do planeta, o bioma amazônico. E o interesse difuso não é só dos brasileiros, mas de todos os habitantes da terra e do cosmos, se é que além da terra existem extraterrestres que terão também interesse em preservar a Amazônia.”

Ao se referir ao presidente Lula quando assinou o acordo de Copenhagen, feito às pressas, comparou com os estudos de impacto ambiental aqui no Brasil, que também são feitos às pressas em desrespeito ao manejo adequado  dos recursos financeiros e da tecnologia. A aprovação de  Belo Monte é  uma postura governamental contrária a todos os acordos firmados pelo Brasil, afirmou Souza Prudente.  “É uma contradição”.

“A Srª ministra Dilma Rousseff, quando abriu a manifestação brasileira em Copenhagen, disse e, com a devida vênia, escandalizou, no seu discurso, que ’o meio ambiente atrapalha o progresso’. E logo em seguida Sua Excelência afirmou que não há progresso sem hidrelétrica. Com a devida vênia, não posso concordar com essas colocações, como lá ninguém concordou com essas colocações da ministra Dilma.”

Ao concluir seu voto, Souza Prudente insistiu que Belo Monte não teria sido licenciada com tanta pressa se tivesse havido um estudo de impacto ambiental sério. Os atropelamentos no processo foram observados pelo Ministério Público Federal em parecer distribuído a todos os membros da Corte e causa estranheza o fato de que esse projeto, já cogitado há mais de trinta anos, desde o Regime Militar, possa ter um desfecho tão apressado, às vésperas da mudança de governo.

Em fecho de ouro ele ainda se referiu aos vinte e três bilhões de reais  previstos nos custos da obra  que, “certamente, não ficará pronta apenas com tal quantia que será derramada dos cofres públicos.”  Finalizou citando Fernando Pessoa e dando seu voto contra uma “tragédia ambiental no planeta, de conseqüências imprevisíveis para todos os seres vivos, que nele habitam.”
Clique aqui para ler o voto do Desembargador Souza Prudente, na íntegra

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Belo monte de violências (VII)

Artigos de Felício Pontes Jr., procurador da República no Pará e mestre em Teoria do Estado e Direito Constitucional pela PUC-Rio.

Organizada em nove textos, a série de artigos está sendo publicada semanalmente pelo Diário do Pará aos domingos, no caderno Brasil.

Em cada fase do processo de licenciamento de Belo Monte houve ilegalidades, mas nada se compara ao Estudo de Impacto Ambiental (Eia). Um pool de organizações não-governamentais, chamada Movimento Xingu Vivo para Sempre, criou o “Painel de Especialistas” com 39 cientistas de várias universidades brasileiras só para analisá-lo.

E apesar do pouco tempo que o Ibama concedeu, o Painel constatou desde a falta de estudos em determinadas áreas até erros grosseiros de dados que inviabilizam Belo Monte.

A etapa seguinte ao Eia era de audiências públicas. Nova infeliz surpresa. Apesar dos impactos de Belo Monte atingirem uma região vastíssima, são marcadas audiências apenas em três municípios atingidos (Altamira, Brasil Novo, Vitória do Xingu) e na capital, Belém. O MPF pede que pelo menos os 11 municípios afetados tenham audiências.

Recentemente se descobriu que os municípios escolhidos pelo Ibama foram exatamente os mesmos em que a Eletrobrás solicitou audiências. A decisão de se curvar aos empreendedores ignora as grandes distâncias e dificuldades de transporte dos atingidos: a população pobre do Xingu.

O pior ainda estava por vir. Numa clara tentativa de calar opositores, no dia 15/09/09, pouco antes da audiência de Belém começar, o Ibama a transferiu para um teatro com apenas 480 lugares, cerca de metade da capacidade do que havia sido previamente designado.

Como resultado, dezenas de pessoas, inclusive indígenas, foram impedidas de entrar ou tiveram a entrada dificultada pela Força Nacional. A farsa de participação popular no debate da maior obra do Brasil era evidente. Os integrantes do Ministério Público presentes tentaram negociar a mudança para um local maior, mas não houve acordo.

O MPF recebeu nos dias posteriores várias queixas e abaixo-assinados de pessoas que não conseguiram entrar na audiência pública, além de relatos de muitos professores universitários e pesquisadores que haviam levado turmas de alunos e foram também impedidos de entrar.

O que ninguém entendia era o porquê de tanta falta de transparência no trato da questão. O que Belo Monte tem que não pode ser debatido publicamente? Será que os cientistas têm razão e o custo de Belo Monte será próximo ao de Itaipu com uma geração de energia de menos de 1/3 desta? Seria verdade que apenas a troca das turbinas de 67 antigas hidrelétricas produzirá a energia equivalente a 2,5 Belos Montes, a um custo cinco vezes menor sem necessidade de nenhuma barragem? E que apenas a troca das longínquas linhas de transmissão produzirá a energia equivalente a dois Belos Montes? Será verdade que apenas 1,5% da toda a energia elétrica produzida no Brasil vem de fonte solar e eólica, enquanto que nos Estados Unidos esse percentual é de 11,37%?

Diante da falta de debate dessas questões, nova ação judicial é proposta. O MPF recebe o apoio do MP do Pará. Eles pedem audiências públicas nas localidades afetadas pela barragem; e reabertura do prazo, já que a íntegra do EIA só foi entregue 9 dias antes da realização da primeira audiência pública.

Conseguem liminar na Justiça Federal em 10/11/2009, que foi suspensa por decisão do TRF, um mês depois. O caso aguarda julgamento para que tudo volte às verdadeiras audiências públicas. 

MPE tenta suspender o licenciamento do Complexo Teles Pires

Dando continuidade ao meu artigo de ontem, sobre o Teles Pires, resgatei a notícia abaixo, do dia 29 de outubro passado e que é muito esclarecedora. O MPE de Mato Grosso usa muito bem o fato de que tantas usinas no rio Teles Pires produziriam impactos cumulativos e sinérgicos que não foram abordados nos estudos ambientais. A análise em separado das usinas comprova que existe uma disposição do governo de não mostrar a verdadeira face da "besta fera". Inseri um mapa que mostra as Terras Indígenas que serão afetadas pelo Complexo Teles Pires. (TM)
Terras Indígenas afetadas pelo Complexo Teles Pires
A 3ª Promotoria de Justiça Cível de Sinop ingressou  com ação civil pública com pedido de liminar contra o Estado de Mato Grosso para garantir a suspensão do procedimento que trata do licenciamento ambiental da Usina Hidrelétrica de Sinop. A usina integra o Complexo Hidrelétrico da Bacia do Rio Teles Pires, na qual se prevê a construção de nove barragens.
De acordo com a promotora Audrey Ility, o principal erro está no fato de que o processo de licenciamento vem sendo conduzido pela Secretaria de Estado de Meio Ambiente (Sema). Ela alega que essa análise não compete à Sema, mas ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama).
“O documentos que instruem os autos demonstram que o Rio Teles Pires é o rio da União, levando-se em conta os critérios Constitucionais, posto que banha mais de um Estado da Federação e se afigura como divisor natural dos Estados de Mato Grosso e do Pará”, ressaltou a promotora de Justiça.
Argumenta ainda que a usina hidrelétrica de Sinop integra um Complexo Hidrelétrico e que, portanto, as obras devem ser analisadas como um todo, pois gerarão significativos impactos ambientais regionais. O referido complexo é composto ainda pelas UHE São Manoel, UHE Teles Pires, UHE Colíder, UHE Magessi e UHE Foz do Apiacás.
Segundo a promotora de Justiça, em junho deste ano o MPE instaurou procedimento investigatório, em Sinop, para apurar eventuais irregularidades no procedimento de licenciamento ambiental da usina. No final de junho, a Sema havia agendado uma audiência pública para discutir o Estudo de Impacto Ambiental do empreendimento, mas não promoveu a divulgação necessária para que a sociedade pudesse participar da discussão.
“Verificando que a audiência pública não foi cercada da publicidade necessária para garantir a efetiva participação popular, o Ministério Público Estadual expediu notificação recomendatória à Sema, a fim de que se abstivesse de realizar tal ato. O pedido foi acatado pelo órgão ambiental”, informou Ility.
Em agosto, o Ministério Público Estadual, por meio da Procuradoria Especializada na Defesa Ambiental e da Ordem Urbanística, promoveu uma audiência em Sinop para discutir os impactos ambientais causados pelo Complexo de Hidrelétrica. Cerca de 500 pessoas participaram da discussão. A Promotoria de Justiça de Sinop também requereu ao Centro de Apoio Operacional às Promotorias de Justiça (Caop) a realização de laudo pericial a fim de constatar eventuais irregularidades no estudo e no relatório de impacto ambiental.
De acordo com a promotora de Justiça, a Sema pretende realizar no dia 18 de novembro a audiência pública que antecede as análises para a concessão da Licença Prévia para realização do empreendimento. “Pretendemos, com esta ação civil pública, que seja declarado, no mérito, a nulidade do procedimento de licenciamento ambiental da UHE de Sinop e, cumulativamente, das demais componentes do complexo hidrelétrico do Rio Teles Pires, cujo procedimento de licença ambiental esteja a cargo da Sema, a partir de seu nascedouro”, finalizou Audrey Ility.
Fonte: Redação 24 Horas News

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Complexo hidrelétrico Teles Pires: seis usinas e um rio


Complexo Hidrelétrico Teles Pires e Terras Indígenas
O projeto Teles Pires, na verdade, é um grande complexo hidrelétrico.  Se for concretizado, poderá se transformar, em menos de cinquenta anos, num fóssil jovem em meio a um deserto induzido no coração da Amazônia.

Telma Monteiro

O rio Teles Pires está nos planos governamentais desde os anos 1980 quando foi feito o inventário da bacia hidrográfica.  Do projeto inicial que permaneceu esquecido até 2001, já constavam os seis aproveitamentos hidrelétricos.  Em 2005 um consórcio formado pelas estatais  Eletrobrás, Furnas e Eletronorte resolveu desengavetá-lo e manter os planos para as seis hidrelétricas, das quais cinco seriam no rio Teles Pires e uma na foz do rio Apiacás, um de seus afluentes.
Apesar da proposta de se construir cinco usinas  no rio Teles Pires - São Manoel (747 MW), Teles Pires (1820 MW), Colíder (342 MW), Sinop (461 MW), Magessi (53 MW) -  Foz do Apiacás no rio Apiacás (275 MW), não foram realizados  estudos dos impactos sinérgicos na região. Um Estudo de Impacto Ambiental e Respectivo Relatório de Impacto Ambiental (EIA/RIMA) da hidrelétrica Teles Pires foi aceito, no mês passado (outubro, 2010) pelo Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Renováveis (Ibama).  As audiências públicas foram marcadas e já são objeto de questionamento por parte do Ministério Público.  
A Empresa de Pesquisa Energética (EPE) tem como prática, nos processos de licenciamento de hidrelétricas na Amazônia, muita pressa em obter as licenças ambientais.  Até dezembro a usina Teles Pires deverá ser leiloada, conforme proclamam os arautos do setor elétrico. A Licença Prévia (LP) do Ibama, se for concedida, vai satisfazer mais uma praxe inventada no bojo do Novo Modelo Institucional de Energia (Lei nº 10 847/10848 de 2004) construído por Dilma Rousseff e Furnas a partir de 2003 quando ela assumiu o Ministério de Minas e Energia (MME).
Na análise do EIA da usina de Teles Pires é possível ter uma idéia do tamanho do problema que afetará duramente a região situada no trecho onde começa uma seqüência de cachoeiras chamadas Sete Quedas,  no baixo curso do rio Teles Pires. Geograficamente essa usina seria construida exatamente na divisa entre dois grandes municípios em dois estados: Jacareacanga, no Pará e Paranaíta, no Mato Grosso.
O reservatório está planejado para alagar 70 quilômentros ao longo do rio Teles Pires. A primeira metade, a montante (rio acima) da barragem, ocuparia um trecho mais estreito do rio engolindo suas  vertentes, transpondo  um declive acentuado e lindamente encachoeirado. Na outra metade, o leito é espraiado,  pontilhado de  muitas ilhas e bancos de areia. Se o projeto fosse viabilizado toda essa riqueza natural ficaria submersa.
A usina de Teles Pires, no entanto, não chegaria aos 50 anos de vida útil, se for levado em conta  o agravamento das características hidrológicas da região. As mudanças climáticas, os períodos cada vez mais intensos de regimes de cheias e vazantes, o aumento do aporte de sedimentos devido à ocupação a montante (rio acima em direção às nascentes), poderiam reduzir ainda mais o tempo de geração comercial da usina.  Esse projeto anacrônico, se concretizado, poderá se transformar, em menos de cinquenta anos, num fóssil jovem em meio a um deserto induzido no coração da Amazônia.
No projeto de barramento do rio Teles Pires está prevista a construção de três eclusas que, segundo os estudos ambientais, viabilizaria uma hidrovia no trecho que vai do município de Sinop até a foz do Teles Pires no rio Tapajós.  Então, os “obstáculos” naturais  formados no  trecho encachoeirado das Sete Quedas, imediatamente a jusante da barragem da usina de Teles Pires, teriam que ser removidos, coisa que não está explicada no EIA. 
A única forma possível de viabilizar a navegação no trecho encaichoeirado das Sete Quedas seria, é óbvio, criar outra usina com um reservatório para deixar submersos e transpor os “obstáculos”,  que alcançaria a barragem de Teles Pires e justificaria  a construção das três eclusas planejadas. Esse projeto  está, sutilmente,  sendo licenciado pelo Ibama, mas sem nenhum alarde:  é a hidrelétrica São Manoel, cuja barragem ficaria cerca de 40 quilômetros a jusante (rio abaixo) da barragem da UHE Teles Pires.  
O plano de concretizar o corredor de transportes representado pelo projeto da  Hidrovia Tapajós-Teles Pires teria o objetivo de escoar os  grãos produzidos na região norte do estado de Mato Grosso. Antes, porém, seria preciso tornar navegável o trecho encachoeirado  do rio Teles Pires até a foz do rio Apiacás, destruindo as ilhas e as Sete Quedas.
Mas esses planos não param por aí. Na mesma região onde está planejada a hidrelétrica São Manoel no limite da foz do rio Apiacás no Teles Pires, outra usina, a de Foz do Apiacás, também está sendo licenciada. O mais surpreendente  é que foi elaborado um único estudo do componente indígena para as duas usinas – São Manoel e Foz do Apiacás -  com a justificativa de  que elas estariam praticamente juntas! Essa informação está explícita nos estudos do processo de licenciamento da hidrelétrica  São Manoel, que tramita simultaneamente aos outros. Para os desenvolvedores dos estudos permanece a certeza de que usinas em sequência – duas no rio Teles Pires e outra na foz do rio dos Apiacás  - na mesma bacia hidrográfica não merecem estudos separados  do componente indígena.  A Fundação Nacional do Índio (FUNAI) se manifestou quanto a essa arbitrariedade?   
As hidrelétricas  São Manoel e Foz do Apiacás  estão imediatamente a jusante,  exatamente no limite da  divisa da Terra Indígena (TI) Kayabi, que  foi considerada nos estudos como  Área de Influência Indireta (AII). As empresas que elaboraram o EIA – Leme Engenharia da Tractebel/GDF Suez e Concremat – de Teles Pires tomaram a iniciativa de considerar que os  impactos decorrentes da construção dessas usinas, além de não afetarem diretamente a TI Kayabi, também não atingiriam duas Unidades de Conservação - a Reserva Estadual de pesca Esportiva, no Pará e o Parque Estadual do Cristalino, em Mato Grosso.
Além da TI Kayabi, a TI Munduruku, mais a jusante, também seria afetada pelas usinas Teles Pires, São Manoel e  Foz do Apiacás, assim como   16 importantes sítios arqueológicos.  Os  municípios de Jacareacanga (PA), Paranaíta (MT) e Alta Floresta (MT) foram considerados  como  Área de Influência Indireta (AII).  
Outro dado importante se refere à logística pensada  para transporte de veículos, materiais, trabalhadores  e equipamentos  para esse lugar remoto da Amazônia, entre os estados do Pará e Mato Grosso. Teriam que ser percorridos cerca de mil e cem quilômetros desde  Cuiabá, dos quais mais 600 através da BR 163,  e o resto por vias sem qualquer possibilidade de acesso razoável.
Uma das informações dos estudos ambientais que causa um  verdadeiro horror é que 40 mil pessoas migrariam para a região no pico das obras,  apenas da usina Teles Pires. Esse contingente representaria outra hecatombe, pois o município de Alta Floresta (MT) tem 37 mil habitantes e o baixo curso do Teles Pires tem 180 mil habitantes.
 No município de  Jacareacanga (PA),  59% são terras indígenas.  A área rural que seria afetada pela usina de Teles Pires tem 66 mil quilômetros quadrados, 20 mil habitantes, é de difícil acesso, com vegetação nativa e é ocupada  por terras indígenas.  O sistema de transmissão da energia desse complexo hidrelétrico está previsto para ter cerca de mil quilômetros e  um corredor de 20 quilômetros de largura.
As empresas que elaboraram os estudos ambientais  das hidrelétricas Teles Pires e São Manoel, consideraram também que a proximidade entre elas (distância entre eixos de aproximadamente 40 km) permitiria o mesmo diagnóstico para o meio socioeconômico, com  os mesmos elementos. A EPE já está distribuindo na região o RIMA de Teles Pires e o Estudo do Componente Indígena das hidrelétricas São Manoel e Foz do Apiacás para marcar as audiências públicas. Isso quer dizer que a EPE e o Ibama podem estar  trabalhando com a estratégia  de  realizar audiências públicas para os três aproveitamentos;  mas o EIA/RIMA aceito pelo Ibama, até agora, diz respeito  apenas à hidrelétrica Teles Pires e não às outras duas.
A Área de Abrangência Regional (AAR) objeto dos estudos da usina Teles Pires compreende  33 municípios no estado de Mato Grosso com um conjunto de estabelecimentos rurais e área de assentamento e dois dos maiores municípios do estado do Pará.  
Para o Governo Federal, a construção de todo esse aparato hidrelétrico é necessária para atender o aumento do consumo de energia na região Norte devido à instalação de novas indústrias eletrointensivas ligadas à mineração. Esse consumo, segundo dados do EIA do projeto Teles Pires, teria crescido de 6,3% para 8,6%.
Está previsto para  os próximos 25 anos, segundo o Plano Nacional de Energia (PNE) 2030, o incremento de mais 88 mil MW de geração com hidrelétricas e de apenas quatro mil MW em geração eólica. Essa previsão tem como base apenas dados de crescimento de consumo e do déficit previsto para o Sudeste/Nordeste/ Centro-Oeste, Mato Grosso e Sul do Pará. Aí cabe perguntar sobre quais os critérios que subsidiaram  o planejamento da Oferta Interna de Energia. 
Já passou da hora de começar a discutir claramente o destino de toda essa energia planejada para os próximos 25 anos; de reivindicar  incentivos para o desenvolvimento em escala econômica viável, de fontes realmente renováveis  e limpas, como a eólica e a solar; de exigir programas de eficiência energética como rotina e acabar com as perdas nos sistemas de transmissão e distribuição.
O EIA/RIMA da hidrelétrica Teles Pires foi aceito pelo Ibama e audiências públicas são apenas mais uma praxe para legitimar todo o processo de licenciamento ambiental de empreendimentos na Amazônia. Na verdade, se pretende mesmo é “enfiar goela abaixo” da sociedade três novas hidrelétricas na Amazônia.
As comunidades da região, os povos indígenas, mesmo sem serem ouvidos, já estão sendo afetados apenas com o anúncio da possibilidade da construção dos projetos. A migração já está começando. Ao longo do reservatório de 70 quilômetros  da hidrelétrica  Teles Pires, estão situados grandes latifúndios voltados para a pecuária e plantação de grãos em plena Amazônia Legal. Há alguma relação entre esses grandes proprietários de terras e o projeto? E a questão das reservas de ouro? Atualmente estão em curso  37 processos minerários de ouro na Área Diretamente Afetada (ADA) pela usinaTeles Pires e três processos minerários para zinco, requeridos pela Votorantim, todos de 2009 – seria coincidência? 

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Ferrogrão: o que tem por trás dos estudos atualizados pelo Ministério dos Transportes e Infra S/A?   Telma Monteiro, para o Correio da Cid...