quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

Irmã Dorothy, Anapu e Belo Monte

Entrevista especial com Felício Pontes Júnior

Há mais de seis anos, antes de ser assassinada por fazendeiros em Anapu, no Pará, a Ir. Dorothy Stang já temia pelas consequências que a Hidrelétrica de Belo Monte provocaria naquela região caso fosse aprovada. “Ela temia pelo impacto socioambiental e pelo dinheiro público que seria jogado fora em uma hidrelétrica que vai ficar parada em torno de quatro meses por ano sem gerar um quilowatt de energia”, contou o procurador do Ministério Público Federal Felício Pontes Júnior, em entrevista, por telefone, à IHU On-Line.

Após o homicídio da religiosa, Pontes Júnior não deixou de lutar pelas principais causas defendidas por Dorothy, inclusive contra Belo Monte. Na entrevista, o procurador critica fortemente o Ibama, que concedeu licenciamento para o início das obras no rio Xingu. “O Ibama será o grande responsável por uma degradação sem precedentes na nossa história.” Pontes Júnior também segue acompanhando de perto a evolução do Projeto de Desenvolvimento Sustentável Esperança, iniciado por Dorothy. “É o verdadeiro projeto de reforma agrária para a Amazônia.”

Felício Pontes Junior é procurador da República junto ao Ministério Público Federal em Belém com atuação na área indígena, ambiental e ribeirinha, e é mestre em Teoria do Estado e Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC-Rio.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Seis anos após a morte de Dorothy Stang, como o senhor analisa a situação de Anapu hoje?

Felício Pontes Júnior –
A população está organizada. Seis anos foram o suficiente para que se criasse uma organização muito forte. Há uma consciência de que o único desenvolvimento possível para a Amazônia, com relação à reforma agrária, é o que consegue conciliar o aumento econômico daquela população com a preservação do meio ambiente. É exatamente isso que o projeto da Ir. Dorothy previa. No último ano, o Pará se tornou o maior produtor de cacau do Brasil, exatamente por conta da contribuição das plantações de dentro do Projeto de Desenvolvimento Sustentável – PDS Esperança da Ir. Dorothy. Para que haja plantação de cacau, você precisa ter a floresta em pé, o cacau precisa de sombra. Isso auxiliou muito no projeto que a Dorothy sonhava. Ela mesma levava as sementes de cacau para a floresta a fim de que os colonos pudessem plantar.

Ainda há uma pressão muito grande dos madeireiros em cima daquela área. Até a morte da Irmã, os madeireiros tentavam atacar aquela área da floresta com papéis, títulos falsos. Depois, a estratégia mudou. Agora eles tentam infiltrar no assentamento trabalhadores de madeireiras como se fossem assentados, colonos da reforma agrária. Essas pessoas estavam tirando madeira dali, o último conflito ocorreu inclusive por causa disso. Aconteceu uma grande revolta, bloqueando estradas de acesso ao projeto PDS Esperança, parando até a Transamazônica.

IHU On-Line – Que mudanças ocorreram nestes seis anos?

Felício Pontes Júnior –
É visível a mudança econômica na vida das pessoas que acreditaram no PDS Esperança. Vemos colonos da reforma agrária que chegaram lá sem ter “nem um facão amolado”, como eles mesmos dizem, e hoje estão motorizados. Têm veículos de carga, embora pequenos e usados, e motocicletas. Isso é uma prova evidente do desenvolvimento econômico que está acontecendo naquela região, graças ao projeto. O PDS está localizado a 50 quilômetros da sede da cidade de Anapu. O que se vê nestes 50 quilômetros é um rastro de miséria deixado por projetos de pecuária que não deram certo. As pessoas que se voltaram para o gado não conseguiram desenvolvimento econômico. O PDS Esperança é o verdadeiro projeto de reforma agrária para a Amazônia. Por isso é alvo de tanta cobiça por parte de fazendeiros e madeireiros.

IHU On-Line – O que a Ir. Dorothy Stang diria dos atuais desdobramentos em torno do licenciamento de Belo Monte?

Felício Pontes Júnior –
Tive a oportunidade de conviver intensamente com a Ir. Dorothy durante os últimos cinco anos da vida dela. Essa era uma grande preocupação dela – temia que o Projeto Esperança fosse por água abaixo se Belo Monte acontecesse. Ela temia que não houvesse planejamento e estrutura suficientes para abrigar as pessoas que viriam para a região, principalmente em Anapu, Altamira e Vitória do Xingu, as cidades mais afetadas.

Naquela oportunidade nós já tínhamos a informação de que Belo Monte não se sustentava do ponto de vista econômico. Quem conhece o rio Xingu, e Dorothy o conhecia muito bem, sabe que a vazão do Xingu é uma coisa impressionante entre a seca e a cheia. No período de cheia ela vai atingir 30 mil metros cúbicos de água por segundo, mas no período da seca é de apenas mil metros cúbicos por segundo. Isso demonstra que a propaganda do governo, que dizia que teríamos 11.000 megawatts de energia, é uma mentira. Inclusive na entrevista do presidente da EPE na semana passada ele confessou que teremos, no máximo, 4000 megawatts de energia. Depois de dez anos de conflito eles admitem que é uma hidrelétrica de porte médio, no que tange a geração de energia, e não de grande porte, como era propagado, embora os efeitos danosos sejam imensos.

Tudo isso já havia sido denunciado por Dorothy Stang. Ela temia por estas duas coisas: pelo impacto socioambiental na região e pelo dinheiro público que seria jogado fora em uma hidrelétrica que vai ficar parada em torno de quatro meses por ano sem gerar um quilowatt de energia.

IHU On-Line – Como o senhor analisa a atuação do Ibama no caso de Belo Monte?

Felício Pontes Júnior –
Pelo impacto desse licenciamento indevido, hoje podemos dizer que o Ibama é o maior violador das normas ambientais na Amazônia. É o que vai causar maior impacto sobre a região com esse licenciamento fajuto. Quando você percebe que existe a previsão de mais de 60 barragens nos rios da Amazônia, ou seja, em praticamente todos, não há outra afirmação a fazer. Há vários projetos grandes e prejudiciais na região amazônica, mas nenhum deles se compara a esses licenciamentos de hidrelétricas.

O Ibama será o grande responsável por uma degradação sem precedentes na nossa história. Barrando os rios à maneira como está sendo feita, inventando licenças parciais e que não existem, o Ibama está tentando jogar com o governo federal, fazendo com que o fato esteja consumado. Para que quando as ações judiciais cheguem ao fim, a barragem esteja praticamente pronta. Será que algum juiz vai ter coragem de dizer: “Então vamos destruir a barragem?" Infelizmente, o Ibama se mostrou um órgão extremamente conivente com todas as barbaridades e atentados às leis que estão sendo cometidos pelo governo federal aqui na Amazônia.

IHU On-Line – O que aconteceu na última audiência em Anapu, que diminuiu o clima de tensão do povo do PDS Esperança?

Felício Pontes Júnior –
Nessa audiência o povo do projeto teve um grande resultado que foi um compromisso, tanto do Incra como da Força Nacional, de estarem presentes na região de maneira permanente. O escritório do Incra em Anapu volta a funcionar de maneira muito mais estruturada e recebemos a promessa de que as forças de segurança estarão na região durante todo o ano. Essa foi uma grande conquista dos trabalhadores do PDS Esperança na audiência pública.

IHU On-Line – Como é a vida nesse projeto hoje?

Felício Pontes Júnior –
Temos uma comunidade cada vez mais forte. A prova disso é a fundação recente de um sindicato de trabalhadores da agricultura familiar, pois não se sentiam representados pelo sindicato antigo. Mais ainda, do ponto de vista econômico, eles viram agora a necessidade de formar uma cooperativa. Quando se organiza um sindicato e uma cooperativa, mostra que está havendo um fortalecimento nos laços de trabalho, de amizade. Ir. Dorothy recebeu aquelas pessoas que eram excluídas, gente de todo o Brasil, expulsos de suas terras por grandes projetos, latifúndios. E essas pessoas tiveram de se agrupar, morar juntas sem nem se conhecerem, formar uma comunidade nova. Esse vínculo que não existia começa a se tornar extremamente forte.

IHU On-Line – O que falta para o povo que era atendido pela Ir. Dorothy?

Felício Pontes Júnior –
A estrutura que o Incra dá aos assentamentos ainda não chegou de forma efetiva àquela região. Embora o órgão tenha se esforçado bastante, ainda não foi suficiente. Não temos, por exemplo, todas as casas do crédito habitação construídas, nem todos os recursos do crédito de fomento concedidos aos moradores. Muito foi construído somente com o suor e com o braço das pessoas que estão lá, com um apoio do governo que ainda não é integral, mas que já foi significativo se compararmos com outros assentamentos na Amazônia. Passo a passo, porém, todos estão percebendo que o assentamento tem progredido, mesmo que, a meu ver e ao do Ministério Público Federal, esse processo poderia ter sido mais rápido. Mas é visível a cada ano a melhora na qualidade de vida das pessoas que estão lá.

IHU On-Line – E quais os próximos desafios para os integrantes do projeto?

Felício Pontes Júnior –
A preocupação do MPF naquela região é a presença da polícia. É isso que os assentados da reforma agrária pedem – que a polícia esteja presente e que não seja comprometida com fazendeiros e madeireiros da região. Tem de ser isenta. A polícia e Força Nacional precisam habitar Anapu, pois é um ano de consolidação do projeto. Além dos assentados, quem pede a presença da polícia lá é a Comissão Pastoral da Terra. É uma prova de que não temem, de que estão trabalhando dentro da legalidade. Se a gente conseguir que as forças de segurança estejam presentes naquela região, teremos uma superprodução de cacau, que tem um melhor preço, e de outras frutas que também foram plantadas lá. Isso fará com que alavanque ainda mais o desenvolvimento das pessoas que vivem naquela região, principalmente no PDS Esperança.

IHU On-Line – Qual sua opinião sobre a postura do Judiciário no processo de julgamento dos assassinos da Ir. Dorothy Stang?

Felício Pontes Júnior –
A mobilização da imprensa nacional e internacional e dos movimentos sociais na Amazônia possibilitou que os cinco envolvidos no caso de Dorothy Stang fossem julgados e condenados. O que causa uma estranheza muito grande é que o principal deles, o que planejou a morte e contratou os demais, esteja solto até hoje, embora condenado a 30 anos de cadeia. Ele está solto exatamente por conta de uma decisão do Tribunal de Justiça do Estado do Pará, que concedeu o direito de apelar em liberdade. Isso mostra que Judiciário ainda está muito longe do ideal de justiça que a população deseja. Vejo o judiciário extremamente distante, desassociado da sociedade.

O mesmo acontece em relação a Belo Monte. Temos vencido ações judiciais no Pará, mas são suspensas no Tribunal Regional Federal de Brasília, que também tem uma postura extremamente distante da realidade. É um poder Judiciário extremamente político. Quando lemos algumas dessas decisões, percebemos que as pessoas que estão decidindo não têm noção do que pensa e o que quer a sociedade brasileira, principalmente a sociedade amazônica. Um judiciário que está fora da realidade brasileira, que se sente acima da realidade, é extremamente perigoso para o país, tanto é que Belo Monte recebeu o licenciamento mesmo com dez ações judiciais propostas, muitas favoráveis, mas suspensas. Porém, nós continuaremos fazendo a nossa parte, não vamos desistir. O que faz com que cada um de nós durma tranquilo aqui na Amazônia é o fato de não sermos omissos perante tanta injustiça.

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3 comentários:

  1. ALERTA EM REDE
    Está para ser montada a maior estrutura arrecadadora de impostos e encargos desde o sucesso do lançamento do Pré-sal e da mega usina de Belo Monte e mais 3 usinas do Madeira e Tapajós. O objetivo é transformar a Eletrobrás na Petrobras do setor elétrico e dar força às subsidiárias, ganhadoras das licitações, no melhor negócio do momento: a distribuição de energia.
    Para atingir o objetivo do “Sistema Único de eletricidade – SUE, precisa contar com 3 fatores principais não difíceis de realizar:
    -- Ampliar a rede de 500 kV que interligará as usinas recém licitadas ao NE, SE e Centro-oeste, o que, convenhamos, custa pouco. Com isso o SUE poderá contar com caminhos alternativos para o transporte de grandes blocos de potência e evitar os incômodos apagões. Mais uma dor de cabeça para ambientalistas.
    -- Principalmente, esperar que fenômenos climáticos -- como os ocorridos em 2005 e 2010 -- não se repitam. Caso em que não haveria energia para transportar e os investimentos seriam inválidos.

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  2. Os procuradores do Ministério Público deveriam, por dever de ofício, abster-se de pronunciar-se fora dos autos, em especial com relação àqueles nos quais atuam como promotores de demandas, pois perdem assim sua característica essencial que é a obrigação de serem isentos e equidistantes, pautando-se apenas pela lei e pelo Direito, e não se deixarem levar emocionalmente ou ideologicamente por esta ou aquela corrente. Infelizmente, temos membros do MP que atuam como verdadeiros 'cabos eleitorais' desta ou daquela demanda, ou contra determinada agremiação política e a favor de outras. Se juízes são obrigados a silenciar fora dos autos e os membros do MP a eles se equiparam em termos de prerrogativas e deveres, não deveriam opinar fora dos autos.

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  3. VISÃO DE SISTEMA
    Ha várias maneiras de “ver” a mesma realidade. Hidroelétricas de fio d’água permitem duas coisas:
    1. Suprir necessidades do SE e Centro-oeste com energia complementar da Amazônia, como pretendem os planejadores do sistema. Tanto geração como transmissão têm baixo custo. Mas, a interligação por si só não produz ganho de sinergia porque as bacias não são integradas. A energia a ser transferida pode não estar disponível em ocasião de acidentes climáticos. O mais difícil é a gestão do caro processo da distribuição que traz mais custos que benefícios.
    2. Produzir eletro-intensivos que é uma forma disfarçada de armazenar energia de águas que seriam vertidas de qualquer modo. O processo é direto e localizado: pode ser feito em baixas tensões, dispensando transmissão e distribuição.

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