terça-feira, 27 de outubro de 2009

Belo monte de mentiras! Parte I

“A história nada exemplar dos projetos hidrelétricos no maravilhoso rio Xingu, inventados pelos mafiosos e herdeiros da ditadura militar” Oswaldo Sevá

Este espaço será dedicado, nas próximas semanas, a divulgar em 5 partes um documento especial e contundente escrito pelo professor Oswaldo Sevá, que narra a verdadeira história do projeto hidrelétrico de Belo Monte, no rio Xingu. O texto é um verdadeiro libelo.

Logo no início da primeira parte Sevá, astutamente, faz um jogo semântico com a palavra “inventário”, comparando aquilo que se faz com os bens das pessoas que morrem com o “inventário” que ser faz nos rios para dimensionar o seu aproveitamento e que implicará numa morte lenta, se alterados os seus potenciais.

Sevá desnuda tecnicamente o processo orquestrado para destruição do rio Xingu e expõe os bastidores do autoritarismo idealizador de uma hecatombe que atingirá povos indígenas e populações tradicionais.

Vale a leitura!

Oswaldo Sevá[1]

1. O projeto de construção de usinas hidrelétricas no rio Xingu já tem trinta anos de manobras estranhas, omissão de informações cruciais, e algumas mentiras grossas.

No final da década de 1970, a empreiteira Camargo Correa e o seu escritório de consultoria CNEC estavam muito bem estabelecidos no Pará, tocando a grande obra da usina de Tucuruí, no baixo rio Tocantins, e praticamente comandavam a empresa estatal Eletronorte. Assim, lançaram seus tentáculos sobre o vizinho rio Xingu, e de lá nunca mais arredaram pé! O velho “China”, Sebastião Camargo – às vezes mencionado como um dos possíveis financiadores da repressiva e ilegal “Operação Bandeirantes”, sabidamente íntimo dos ditadores-generais - conseguiu que a Eletronorte encomendasse ao CNEC um “inventário do potencial hidráulico” do rio Xingu. Ler toda a matéria

Inventário, todos sabem é o que se faz com os bens de uma pessoa quando morre, para ser definido quem fica com qual parte. No caso, um nome bem apropriado, pois morrem ou são modificados na marra todos os demais usos ou potenciais do rio: pesca, navegação, turismo ecológico e de aventura, agricultura e extrativismo ribeirinhos, vida selvagem aquática e peri-aquática, patrimônio arqueológico e de cavernas. Esse estudo, pronto em 1980, adotou o conceito tecnocrático de aproveitamento hidrelétrico integral. Não o aproveitamento de todo o rio, ainda bem!, mas apenas do trecho que vai da divisa Mato Grosso / Pará em direção ao Norte. Ou seja, rio abaixo do Parque Indígena do Xingu; não fosse esse Parque tão conhecido e importante, criado décadas atrás, o inventário certamente apontaria outros projetos de usina, no trecho mato-grossense. Inventário é o tal nome que já diz tudo: o patrimônio do rio e das terras ribeirinhas pertencerá às empresas de geração de eletricidade; para concretizar esse aproveitamento de um desnível de quase trezentos metros, eram indicados os locais e tamanhos de cinco grandes usinas.

No trecho mais caudaloso do Xingu paraense, abaixo da foz do maior afluente, o rio Iriri, e ao longo da esplendida série de cachoeiras da Volta Grande, projetaram dois barramentos para as duas maiores usinas. De modo calculado para que a cidade de Altamira não fosse totalmente inundada, mas ficasse espremida entre a represa de Kararaô e a enorme barragem de Babaquara, que formaria o maior lago artificial no Brasil e segundo maior do mundo, com mais de seis mil km quadrados. Precaução que não tiveram ao definir um outro projeto, chamado Ipixuna, localizado rio acima da terra dos índios Araweté – que se denomina T.I. Igarapé Ipixuna - cuja represa iria sepultar totalmente a cidade de São Félix do Xingu, além de bons pedaços da principal rodovia, que liga com Tucumã, Ourilândia do Norte e Redenção, e de grandes glebas da principal terra dos índios Mebengokre que nós chamamos Caiapó. Fatos sempre omitidos pela propaganda oficial!

Destacamos aí também a manobra lingüística: para batizar os projetos de usinas os brancos eletrocratas pegam nomes que os índios dão para uma ilha (Babaquara), um igarapé (Ipixuna), e até suas palavras de ordem (Kararaô, um grito de guerra na língua Caiapó), enquanto pretendem inundar ou então deixar para sempre no trecho seco do rio, várias aldeias populosas de gente que habita o Xingu há séculos: os Yudjá, que chamamos Juruna, os Asurini, os Caiapó, os Xipaia, os Curuaia, os Araweté, e os mais recentes na região, Parakanã e Arara. No caso do projeto Kararaô, os Caiapó não gostaram dessa toponímia desastrada, e já em 1989 protestaram; a Eletronorte mudou o nome do projeto para Belo Monte, já que a casa de força da usina ficaria próxima das vilas ribeirinhas do Xingu, Belo Monte do Pontal e Santo Antonio do Belo Monte. Mas, os brancos da empresa estatal não devem ter se lembrado que Belo Monte foi também um dos nomes da vila de Canudos, local da resistência de Antonio Conselheiro no sertão baiano há um século !

No projeto chamado Kokraimoro, rio acima da cidade de São Félix, a própria barragem e o canteiro de obras foram projetadas bem em cima do principal local da Terra Indígena de mesmo nome, que já era demarcada e homologada em 1980: a maior aldeia Caiapó, a pista de pouso, a escola e o ambulatório da FUNAI- Fundação Nacional do Índio. A última das grandes usinas projetadas, na fronteira Sul do Pará, foi chamada Jarina, teria uma represa subindo o Xingu pela divisa dos Estados e entrando na Terra Caiapó chamada Capoto-Jarina, atravessada pela rodovia BR-080, e chegando perto da Cachoeira Von Martius, dentro do Parque Indígena do Xingu, no MT. Em cada local que seria atingido e modificado pelas obras moram dezenas e até centenas de índios em aldeias, e mais centenas de outros que ficam fora das aldeias, inclusive os índios que tem casa na cidade, em Altamira e em São Felix. E mais milhares de brasileiros do Nordeste, do Maranhão, do Sul, de todo canto. E o que dizem os tais projetistas, alem de repetir sem parar os mantras do “progresso” e do “desenvolvimento” ? Por exemplo,no caso do projeto Belo Monte os seus recados são do seguinte tipo:

... as terras requisitadas pela obra são na maioria, públicas, tanto faz quem mora em cima, tem que sair! ... os Juruna não vão ser alagados, portanto, não precisam ser consultados, nem precisa ser implementado o artigo 231 da Constituição! ... os índios fora de aldeia nem índios são! ... os beiradeiros e moradores dos baixões de Altamira vivem muito mal, vão viver melhor nos COHAB que a Eletrobrás promete construir nas colinas da periferia!

Ou seja, os projetistas e seus arautos omitem dados fundamentais e repetem várias mentiras. Por exemplo, omitiram até o início de Setembro de 2009, a poucos dias da realização das Audiências Publicas para a etapa de Licença Ambiental Prévia, que não havia qualquer plano de re-assentamento das populações a serem “compulsoriamente deslocadas” de suas moradias urbanas e rurais. O Estudo de Impacto Ambiental, o EIA, realizado por outras grandes empresas (Andrade Gutierrez e Odebrecht) além da mesma Camargo Correa e da principal estatal Eletrobrás, estima um total de quase vinte mil pessoas a serem desalojadas, e promete, apenas a uma parte delas, uma indenização por suas propriedades e benfeitorias!



[1] Professor da Universidade Estadual de Campinas, SP, Engenheiro, Doutor em Geografia Humana pela Universidade de Paris - I, colaborador dos ameaçados e dos atingidos pelas barragens

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