quarta-feira, 1 de abril de 2009

Carta de Fortaleza

II Seminário Brasileiro contra o Racismo Ambiental

Os participantes do II Seminário Brasileiro contra o Racismo Ambiental, organizado pelo GT de Combate ao Racismo Ambiental ∕ RBJA, destacam em seu documento final três casos emblemáticos, que reafirmam a importância de nossa luta. 

O primeiro deles é o de Crispim dos Santos, convidado para representar o Quilombo de São Francisco do Paraguaçu, Bahia, cuja presença chegou-se a temer não viesse a se concretizar devido às ameaças de morte que sobre ele e outros companheiros de sua comunidade pairaram na semana anterior ao Seminário. 

A segunda participante é uma guerreira, Angelina de Carvalho Pereira, do Movimento de Mulheres Camponesas do Acre, que contagiou a todos com sua força e relatos sobre a coragem de suas companheiras, algumas processadas e condenadas por lutarem pela garantia de seus direitos, ameaçados pela Aracruz Celulose no Rio Grande do Sul. 

O terceiro caso não se limitou a um indivíduo, mas ao povo indígena Anacé. Ameaçados de expulsão de suas terras pela implantação do Complexo Industrial Portuário do Pecém, os Anacé nos receberam no último dia de trabalho e conosco partilharam seu território, seus alimentos, seus cantos, suas danças e sua alegria, bem como seus receios e sua indignação frente aos riscos de serem sumariamente negados em sua identidade e expulsos de suas terras. 

Esses três casos simbolizam as preocupações e o compromisso que o próprio tema do encontro se propôs a discutir - Disputa pelo território e capitalismo: desenvolvimento para quê e para quem. 

De um lado, eles evidenciam as diversas formas de violência que vêm sendo enfrentadas pelas populações tradicionais; de outro, dão conta também da rica  resistência que elas estão estabelecendo frente aos que buscam dizimá-las em nome de um suposto “progresso”, social e ambientalmente injusto. Esse processo tem culminado na constituição dessas populações como sujeitos políticos, na luta pela garantia dos territórios, autonomia e soberania dos povos. 

Seria bom se esses três exemplos fossem os únicos casos a serem citados, debatidos e solucionados, pois isso significaria que um novo momento de justiça e de democracia ativa teria sido estabelecido em nosso País. A realidade, entretanto, é que casos como esses se multiplicam aos milhares no campo e nas cidades, como seria comprovado nesses três dias. Representantes de diversos estados expuseram diferentes situações de Racismo Ambiental, onde as maiores vítimas da degradação socioambiental são populações vulnerabilizadas por diferentes estigmas e condições socioeconômicas desfavoráveis. Essas situações são conseqüências de um sistema econômico e de um modelo de desenvolvimento que, para desilusão de muitos ganha, no atual Governo, ritmos acelerados e novos formatos, em alguns casos tão ou mais desumanos que em governos anteriores. 

Das cidades, as vozes contavam de Catadores de Materiais Recicláveis, trabalhando em meio a grandes lixões; de moradores de áreas de risco, geológico e ambiental, cujas vidas são cotidianamente ameaçadas; de favelas transformadas em guetos de pobreza e negação de direitos básicos. Nesses espaços, as mulheres, cada vez mais responsabilizadas pelo sustento das famílias, gestão da pobreza e suas conseqüências, têm sua cidadania negada sob a égide de um estigma que as rotula como “mães, mulheres e irmãs de marginais”. Sofrem, assim, variadas formas de violência - doméstica, urbana e institucional. 

Do campo e da floresta, viriam relatos de inúmeros conflitos envolvendo povos indígenas, comunidades quilombolas, pescadores artesanais, ribeirinhos, quebradeiras de coco, camponeses, numa sucessão de exemplos de indignidades, na maior parte com a omissão e/ou conivência dos poderes executivos, legislativos e judiciários. 

Em todos os casos, os processos são semelhantes: projetos econômicos são apresentados sob o discurso do progresso, desenvolvimento e geração de emprego e renda. A realidade, no entanto, é bem diferente. Sob esse pretexto, privatizam e exploram os bens naturais e o trabalho das comunidades, dizimando culturas e tradições. Os poderes executivos garantem infra-estrutura, subsídios e a própria imposição política dos grandes empreendimentos nas comunidades, através de discursos falaciosos, processos de cooptação, divisão e tentativas de enfraquecimento da resistência desses povos. 

Os legislativos, atendendo ao lobby do poder econômico e aos seus próprios interesses, desconstroem leis, ignorando convenções e tratados dos quais o Brasil é signatário, a fim de negar o direito das comunidades, traindo a democracia e comprometendo a soberania dos territórios. Os judiciários, com raras exceções, têm sido implacáveis na garantia dos interesses dos poderes econômicos e políticos com eles alinhados. Assim, todo um aparato institucional é colocado à disposição dos grandes empresários. As reivindicações das comunidades transformam-se em casos de polícia, e quem ousa resistir passa a ter a própria vida e a de sua família ameaçadas, como no caso de Crispim dos Santos e tantas outras pessoas.  

Segue-se a degradação, num aviltante processo de injustiça ambiental, articulada a uma reafirmação da dimensão racista que historicamente tem estruturado a sociedade brasileira. Inegavelmente racista, porque a imposição de um modelo único de desenvolvimento e crescimento não se dá senão pela negação de outras possibilidades que os grupos comunitários, inclusive urbanos, vivenciam em seus cotidianos. Tais formas de viver são classificadas como “pobres, atrasadas e transitórias”, devendo adequar-se ao modelo dominante - capitalista, branco e ocidental -, ainda que isso resulte em morte e degradação. 

Nas florestas – lugar de vida dos encantados e dos orixás e fundamental para a manutenção do modo de vida e identidade dos povos e comunidades tradicionais -, as derrubadas são um primeiro passo do genocídio cultural. As próprias comunidades - cujas necessidades são conseqüência de históricas negações de direitos – são seduzidas por promessas de melhorias de vida e usadas como “mão de obra descartável” em atividades “inferiores” no início do processo produtivo. Nessa lógica perversa, são elas que irão arrancar as raízes das árvores que lhes davam sombra, frutos e vida. São elas que prepararão o terreno para a semeadura das monoculturas que as expulsarão, degradando os solos, privatizando a água e a terra, e por fim destruindo todas as formas tradicionais de trabalho.  

No litoral, uma nova leva de “invasões estrangeiras” expulsa pescadores e pescadoras artesanais, marisqueiras, caiçaras, loteando a zona costeira em resorts que se anunciam como as “Cancuns” brasileiras ou destruindo dunas, apicuns e manguezais para ainda contaminar as águas com os dejetos da carcinicultura. Como resultado, degradação dos bens ambientais, favelização das comunidades, exploração sexual, tráfico de meninas e mulheres, uso abusivo de drogas, violência, juventude sem perspectiva.

No interior, rios são desviados e barragens são construídas sem qualquer respeito pelas populações ribeirinhas, para que formas bastardas de produção de energia garantam o funcionamento de indústrias que gerarão commodities a serem exportadas a alto custo e baixo preço. Ao Brasil cabe “assumir” o ônus de produzi-las, liberando os países ricos para a “nobre” tarefa de beneficiá-las com tecnologias de ponta. Agora, nosso papel será o de importá-las a preços altos, muito além do poder aquisitivo daqueles que pagaram com seus direitos humanos o primeiro momento dessa cadeia de produção. 

Como se não bastasse tudo isso, o trabalho escravo continua vivo nos latifúndios mantidos inclusive por membros dos três poderes. Nas colheitas das plantações e nas carvoarias, a mão-de-obra infantil é usada de forma tão desumana quanto nos primórdios do capitalismo industrial. Para muitos povos indígenas e quilombolas, o suicídio torna-se muitas vezes a única alternativa a esse não-ser a que se vêem condenados.

Mas as evidências das injustiças e do Racismo Ambiental, não impedem o aparato midiático de se pôr a serviço desse modelo. De acordo com os interesses que representam, os meios de comunicação invisibilizam e/ou deslegitimam a existência desses povos e comunidades, mostrando-os como “entraves ao desenvolvimento” e subsidiando sua criminalização. 

Nos grandes jornais e redes de televisão, meia dúzia de famílias “legisla” em causa própria, numa orquestração afinada que preenche principalmente as páginas de opinião. São artigos que se repetem nos diferentes estados, assinados por intelectuais contratados que usam semanalmente seus títulos acadêmicos num acinte à sociedade à qual devem seus privilégios de (de)formação. Manipulam a ignorância e reforçam a ideologia individualista e consumista da sociedade, ao mesmo tempo em que oferecem legitimação ideológica a um poder que deveria ser público, mas está na verdade a serviço das classes dominantes.

É contra esse estado de coisas que o Grupo de Trabalho de Combate ao Racismo Ambiental / RBJA se levanta. 

Desenvolvimento para quê e para quem?  Não existe desenvolvimento às custas da desigualdade e da exploração. Progresso não pode ser definido pela ganância e pelas leis do mercado. Menos ainda quando essas leis recriam, em pleno século XXI, verdadeiros leilões de seres humanos. 

Um projeto de sociedade verdadeiramente justo e democrático terá que ser construído a partir do reconhecimento dos direitos das comunidades que de fato defendem os nossos territórios e produzem com seu trabalho, o sustento, os meios de vida, a força, a cultura e a alma deste País. 

Nesse sentido, o GT de Combate ao Racismo Ambiental reafirma-se como sujeito na luta política por uma sociedade radicalmente democrática, onde para todas as populações sejam garantidas autonomia, soberania, justiça e participação política. Apóia todas as lutas dos povos indígenas, das populações quilombolas, ribeirinhas, pescadoras e de todas as comunidades tradicionais do campo, bem como dos movimentos populares urbanos que cotidianamente têm enfrentado a força de uma sociedade dominada pela lógica desumanizadora do mercado e do capital. É esse o seu compromisso. 

Grupo de Trabalho de Combate ao Racismo Ambiental / RBJA

24 de março de 2009


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